Alice Leite
A radicalização do movimento abolicionista ganhou força na década de 1880, deixando de ser assunto de elite e tornando-se um movimento nacional. Indo de acordo com a popularização do assunto, os escravizados, cientes de que a continuidade da escravidão estava em debate, reivindicaram a abolição em forma de revoltas organizadas, fugas e criação de novos quilombos. Na província de São Paulo, o processo de revoltas e migrações dos escravizados se dava a partir da saída do interior para chegar à capital e com isso, tendo algumas levas, indo em direção a cidade de Santos. Segundo Munhós (1992, p.49), durante a década de 1880, dois momentos mais expressivos de atração de ex-escravizados foragidos se deram na cidade de Santos: Entre os primeiros três anos da década, ou seja, 1880 a 1882, com as pessoas originárias da própria região e, a partir de fins de 1886, com a vinda de escravizados foragidos de várias partes da província.
Essa articulação de ex-escravizados foragidos para Santos deu-se pelo ideário que os abolicionistas locais haviam criado uma cidade totalmente abolicionista e “protetora dos negros”, e também pela atuação de um grupo de abolicionistas chamados Caifazes, liderados por Antônio Bento, que, aproveitando-se da conjuntura das rebeliões, eram vistos como auxiliadores das revoltas escravizadas; porém, a sua empreitada nada mais era do que tornar os próprios edificadores das revoltas em meros subordinados a partir de mecanismos controladores das insurgências, controlando a mão-de-obra negra e refugiada, com o intuito de adquirir ganhos das ilegalidades das revoltas escravas que não só beneficiou os Caifazes mas também as forças abolicionistas da cidade de Santos. Com isso, conseguiam utilizar a sua mão-de-obra na cidade, reintegrando-os num reduto projetado para que Santos não sofresse as conseqüências das demais províncias que lidavam fortemente com as revoltas escravas.
Em meio a essa necessidade de atrair para a cidade os ex-escravizados fugitivos, foi criado em Santos nos finais de 1886 e os primeiros meses de 1887 o reduto do Jabaquara, pelos abolicionistas locais no morro do italiano Benjamin Fontana; colocando Quintino de Lacerda, um ex-escravizado vindo de Sergipe, com a imagem de chefia. De acordo com Pereira (2011, p. 108), era simbolicamente importante ter Quintino de Lacerda, figura líder e ex-escravizado, por representar e reforçar o ideário de uma terra livre e totalmente abolicionista que Santos construiu ao final do século XIX. Para a história local e nos relatos dos jornais do final do século XIX e início do XX, o reduto do Jabaquara é amplamente conhecido como “Quilombo”.
Quanto às moradias do reduto, eram feitas de madeira, palha e barro por seus moradores. Segundo Munhós (1992, p.7), os habitantes de Jabaquara tinham trabalhos urbanos como em transportes, estiva, armazéns, etc. Além disso, muitos trabalhavam nessas atividades urbanas enquanto mantinham os trabalhos em suas roças, artesanatos e outras atividades dentro do próprio reduto.
Após a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, não houve nenhuma medida de integração social e econômica ao povo negro ex-escravizado, muito menos distribuição de terra ou acesso à educação. Com isto, a desigualdade permanente levou a um grupo de trezentos a quinhentos homens negros da cidade de Santos, em 1889, a reivindicarem, através de uma reunião liderada por Quintino de Lacerda, uma série de exigências necessárias. Entre as pautas, o principal era o reconhecimento de que a abolição da escravatura no Brasil se deu como resultado dos inúmeros esforços populares que se impuseram energeticamente à coroa. Com a abolição, as terras do Jabaquara entraram em processos judiciais e o futuro de seus remanescentes negros tornou-se segundo plano.
Benjamin Fontana, imigrante italiano e filantropo abolicionista que supostamente havia cedido algumas de suas propriedades para a formação do reduto do Jabaquara, entrara em litígio com Gaffrée e Guinle, importantes empresários que questionavam a propriedade de Benjamin Fontana sobre as terras. Em 1898, Quintino enfrentava um processo de Benjamin Fontana sobre essas terras e consequentemente, sobre sua casa. (PEREIRA, 2011, p. 25,26)
De acordo com Lanna (1996, p. 101 - 103), os morros não escaparam do processo de expansão e valorização que a cidade estava passando, e com isso, os morros que eram ocupados pelos trabalhadores pobres da cidade foram objeto de intensa disputa judicial. Benjamin Fontana, com seus capangas, expulsou violentamente os antigos moradores do Jabaquara. Os terrenos de acesso aos morros do Jabaquara e Nova Cintra, aparentemente pertencentes a Fontana, foram também negociados judicialmente.
Esses conflitos sobre as posses das áreas dos morros não resultaram na construção de nenhum tipo de infra-estrutura urbana que pudesse melhorar as condições de vida dos seus moradores. Em 1893, alguns dos moradores do Jabaquara entraram na justiça com uma ação de manutenção de posse. A petição de 1893 buscava garantir a manutenção de posse aos moradores que eram todos negros, escravizados fugidos e refugiados no que foi um dia o quilombo das disputas judiciais, que, até o século XX, concediam intermitentemente o direito de posse daquelas glebas a diferentes postulantes. (idem, 1996, p. 212) De forma geral, a inserção dos negros na sociedade, tanto aqueles que residiam há mais tempo na cidade de Santos, quanto os recém- advindos, deu-se de maneira instável e precária.
LANNA, Ana Lúcia Duarte. Uma cidade na transição: Santos, 1870 - 1913. São Paulo-Santos, Hucitec/Prefeitura Municipal de Santos, 1996
MUNHÓS, Wilson Toledo. Da Circulação Trágica ao Mito da Irradiação Liberal: Negros e Imigrantes em Santos na Década de 1880. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, p. 1-176, 1992
PEREIRA, Matheus Serva. Uma Viagem Possível: da escravidão à cidadania. Quintino de Lacerda e as possibilidades de integração dos ex-escravos no Brasil. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2011
Alice Leite é pós-graduanda em História e Cultura Afro-brasileira e Indígena, formada em História pela Universidade Metropolitana de Santos.
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