Tita Carneiro
Mais um ano, mais um dia das mães, mais dezenas, centenas, milhares, milhões -uma a uma- mulheres interrompidas pela força do Estado de exercerem as suas maternidades. Motivos? Quaisquer um, nenhum deles justificaria, pois o racismo que em forma de bala atinge uma criança dormindo em sua cama, em sua casa, nas favelas, é o mesmo que faz com que uma jovem mulher negra moradora da periferia seja acometida por uma morte súbita aos 27 anos de idade.
O racismo como uma estrutura-filtro que permeia quantos anos sujeitos brancos ou negros podem/devem viver. Ou como diria Osvaldo Rafael Pinto Filho, na websérie “Enití Lànà – Aquele que abre o caminho”, surpreso por estar vivo aos 74 anos, se refere a sua trajetória de homem negro como sendo um ponto fora da curva, considerando que lutou contra a ditadura, enfrentou o racismo dentro de partido socialista, da universidade e de uma série de espaços em que atuou ao longo de sua importante vida.
Vidas interrompidas, mães que de forma abrupta e violenta, ano a ano refazem dos filhos as lembranças, violência que em última instância atinge as mulheres negras, tendo em vista o fundante aspecto relacional entre mães e filhos e a perda irreparável que isto significa.
Os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro relativos ao ano de 2018, por exemplo, espelham a realidade nacional, em que de acordo com o 13º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, 6.220 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais, sendo: 99,3% das vítimas homens, 75,4% negros e 77,9% entre 15 e 29 anos de idade.
Sueli Carneiro, em sua tese de doutorado “A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser” (2005), afirma que sob o signo da morte, do "deixar morrer", a violência urbana no Brasil apresenta padrões definidos pela ONU como indicadores de guerra civil. As vítimas são na maioria absoluta homens, jovens, negros e pobres, vítimas de violência letal, assassinados, via de regra, por outros homens, jovens, pobres e majoritariamente negros.
Mortes estas já previsíveis mesmo diante de sua imprevisibilidade. Paradigmáticas e reafirmadoras de uma sentença prevista como uma lógica social anti-negra, anti-cultura negra, anti-vidas negras, anti-conhecimento negro ou qualquer coisa relacionada às vivências e resistências negras. O combate ao racismo como algo pra ontem, deve ser bandeira de todes aqueles que lutam e acreditam em um mundo com valores diferentes dos que hoje aceitamos e por vezes, reproduzimos. Este combate deve ser feito nas casas legislativas, executivas, dentro dos movimentos e partidos políticos, nas instituições, escolas, nas relações familiares e dentro de nós mesmos, como condição para assumirmos as consequências de uma nação construída sob a falácia da democracia racial e, portanto parcialmente embranquecida e duvidosa de sua negritude.
Quem vai pagar a conta?
Quem vai contar os corpos?
Quem vai catar os cacos dos corações?
Quem vai apagar as recordações?
Quem vai secar cada gota
De suor e sangue
Cada gota de suor e sangue
Cabô
(Luedji Luna)
Tita Carneiro é doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (UFBA) e militante da Consulta Popular de Pernambuco.
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