Tiago Casaes
A tradição histórica de Ilhéus e região sempre foi o de negação da existência da utilização de mão-de-obra escravizada nas fazendas de cacau. Essa tradição buscava perpetuar um determinado tipo de mitologia da história do cacau que negava a presença de escravizados na lavoura cacaueira. Nas últimas décadas, o surgimento de pesquisas comprovando, com base em exaustivas fontes, a presença de escravizados trabalhando na lavoura cacaueira, fez cair por terra o mito que negava a escravidão e o trabalho escravizado na região. Na segunda metade do século XIX, havia a presença até de crianças negras trabalhando nas fazendas de cacau, tanto nos campos como nas barcaças de secagem, isso após a Lei do Ventre Livre (1871). Os afro-brasileiros plantaram os primeiros pés de cacau. E continuaram plantando após o fim da escravidão.
O ano após a abolição da escravidão marcou o início do período republicano que deu continuidade ao discurso oitocentista do trabalho atrelado ao projeto civilizador e moralizador da nação brasileira. Para a população afro-brasileira, restou-lhe apenas empregos subalternos, pequenos trabalhos autônomos para fins unicamente de sobrevivência. População esta, recém liberta a partir de uma lei que garantiu apenas uma liberdade inacabada, incompleta, sem garantia plena de cidadania, apenas um ato jurídico que não foi acrescido de mudanças sociais, reforma agrária, inclusão educacional, etc., que garantisse uma condição social digna para os egressos.
Durante as primeiras décadas do século XX, muitos ex-escravizados chegavam à Ilhéus e região para trabalhar nas fazendas de cacau, afirmam Mary Ann Mahony, Walter Fraga, Camila Avelino e outros pesquisadores. Ainda que o contexto seja o de pós-abolição, os resquícios da escravidão ainda eram notados, principalmente nas relações de trabalho. Em 1920, havia cerca de 2.641 crianças e adolescentes trabalhando na lavoura de cacau em Ilhéus, de acordo com o Censo Demográfico do Brasil daquele ano.
Na imagem registrada em 1925, aparece uma criança negra no trabalho da pisa das sementes de cacau num compasso que se assemelha a uma dança, tarefa esta que servia para eliminar o mofo/fungo que se desenvolvia com a umidade e para retirar o resto de emucilagem antes de dar início ao processo de secagem. Vale ressaltar que nesse período da década de 20 do século passado, alguns projetos de educação profissional começaram a aparecer, muito embora não tenham saído do papel, com exceção da colônia agrícola do bispado que abrigava dezenas de crianças trabalhando no plantio e cultivo de cacau. Muitas crianças negras, como pode ter sido o caso da criança reportada acima, ficaram sob as tutelas de fazendeiros e famílias da cidade. A tutela foi largamente utilizada dentro da cidade de Ilhéus, não para serem educadas e amadas, mas para servirem de mão-de-obra na lavoura cacaueira e nos serviços domésticos em troca de comida e moradia.
Na década seguinte, mais especificamente em 1933, foi lançado “Cacau”, o primeiro romance de Jorge Amado ambientado na cidade de Ilhéus, fazendo denúncias a respeito da exploração de trabalhadores, das péssimas condições de trabalho, baixos salários e afins.
Pulando para o século XXI, ainda se verificam condições de trabalho semelhante à escravidão no Brasil, na Bahia e em Ilhéus. O artigo 149 do Código Penal estabelece que trabalhos forçados ou a submissão do trabalhador a jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho são características de trabalho análogo à escravidão e cabe pena de reclusão de dois a oito anos e multa.
Em 2019, uma reportagem da Rede Record denunciava condições de trabalho análogo à escravidão no sul da Bahia. A equipe do Câmera Record acompanhou a fiscalização de auditores do trabalho nas fazendas de cacau próximas a Ilhéus. Trabalhadores relataram condições de trabalho degradantes, inclusive falta de água potável e luz elétrica, e sem as mínimas condições básicas de saúde e segurança. Na matéria em questão, um jovem negro comenta que trabalha na fazenda de cacau desde os 12 anos de idade sob estas condições degradantes.
28 de janeiro é o dia do Combate ao trabalho escravo. Uma data não comemorativa, mas combativa, uma vez que ainda existem pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão, inclusive em Ilhéus. É necessário combater e extirpar da sociedade todo tipo de exploração, degradação humana e negação de direitos. Refletindo que cada direito trabalhista surrupiado é uma rememoração do cativeiro. Mas para combater é preciso lembrar que existem pessoas em situações de trabalho desumano ainda hoje. Lembrar é preciso. Uma região que tem a tradição de negar que houve escravidão no passado, também nega(rá) que existe escravidão no presente. Lembremos. Ao combate!
Tiago Casaes é professor e Mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Confira trecho do filme "Brasil Pitoresco – Viagens de Cornélio Pires" (1925)
A riqueza dos "tempos áureos" do cacau foi construída em cima de muito sangue de pretos e caboclos!!!
É um artigo bastante pertinente, visto que ainda há dúvidas se devemos algo aos negros com relação à reparação que a "sociedade" se esforça bastante para não fazer. Aliás, aqui em Ilhéus, tem professor "branco" trabalhando horas a mais e sem receber por isso. Conheço alguns escravos modernos...