O CASO DOS SINDICATOS DE DOMÉSTICAS
Deyse Quinto
Dona Laudelina de Campos Melo foi uma mulher negra trabalhadora doméstica que, em 1936, fundou a primeira Associação Profissional de Domésticas na cidade de Santos (SP), com objetivo de lutar pela melhoria das condições de vida das domésticas brasileiras. Na época, o cotidiano de trabalho dessas trabalhadoras era marcado pela jornada de trabalho indefinida, sendo então obrigadas a ficar disponíveis durante todo o dia, pois era exigência comum que morassem na casa dos patrões.
Durante a primeira metade do século XX, as domésticas não tinham direito a folga semanal, nem a folga nos feriados, nem a férias. Não tinham salário mínimo definido e, por vezes, trabalhavam apenas por comida e moradia. Não recebiam adicional noturno, não contavam com normas de segurança de trabalho. Não tinham acesso à previdência social, sendo abandonadas a própria sorte na velhice, depois de anos de prestação de serviço a uma mesma família. Também não tinham licença maternidade ou licença por doença. Mal comiam e mal dormiam, pois sua alimentação se restringia ao que sobrava e seu descanso ao cômodo em que se guardavam os entulhos da casa.
As domésticas, em sua maioria mulheres negras, eram exploradas à exaustão em prol do bem-estar da família branca classe média e burguesa. A deliberada falta de comprometimento do Estado em regular a profissão permitiu que mulheres negras fossem mantidas em condições análogas à escravidão, sem que isso fosse considerado uma afronta aos valores dessa sociedade. Ao contrário, essa exploração era normalizada e justificada ao se dizer que aquela trabalhadora era “quase da família”.
E foi contra essa realidade que Laudelina reivindicou o reconhecimento jurídico da profissão e a regulamentação dos direitos trabalhistas da categoria. Para que seus anseios se concretizassem, Laudelina entendia que era fundamental a organização da categoria em um sindicato. Assim, ao longo da segunda metade do século XX, temos o fortalecimento das organizações políticas de trabalhadoras domésticas em todo o Brasil. Em 1972 conseguiram o reconhecimento da profissão. Em 1988, na Constituinte, alcançaram novos direitos trabalhistas, como férias remuneradas, previdência social e a sindicalização. Em 2013, conquistaram a equiparação dos direitos das domésticas aos dos demais trabalhadores urbanos.
Nesse processo de organização e luta, as domésticas vêm transformando a realidade social. Para tanto conseguirem, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas do Brasil (FENATRAD) demonstra o investimento na organização a nível nacional. Nos dias atuais, as trabalhadoras reconhecem seus direitos e têm maior poder de negociação com seus patrões. Também já não passam como aceitáveis patrões que sujeitam as domésticas a situações humilhantes e de desrespeito a sua integridade física e moral.
Mas, o que podemos tirar desse breve panorama sobre a história dos sindicatos de domésticas do Brasil?
Primeiro, cabe lembrar o retrocesso dos direitos trabalhistas após o Golpe de 2016, marcado principalmente pela “reforma” trabalhista que descaracterizou os direitos sociais estabelecidos pela CLT. Nesse mesmo cenário, ainda há a precarização das relações de trabalho, a que chamamos de uberização. Uma das principais características desse contexto é o agravamento e expansão daquilo que podemos denominar de marginalidade jurídica, onde o Estado se desobriga de estabelecer ou de fazer cumprir determinadas leis trabalhistas. Desse modo, os e as trabalhadoras estão à própria sorte de negociar com quem informalmente contrata seus serviços, numa negociação em que representam o elo mais fraco.
Quantos de nós são trabalhadores que precisam de mais de um trabalho para fechar suas contas? Quantos não conseguem tirar algumas semanas de descanso? Quantos trabalharam mais de 14 horas por dia? Quantos, com Covid-19, não tiveram seu período de afastamento respeitado? Quantos não conseguem manter uma alimentação digna e nutritiva? Quantos não têm condições de moradia seguras e confortáveis?
Nesse cenário de retirada de direitos sociais, em que o sentimento de insegurança e desesperança em relação ao futuro é compartilhado por todos nós, a experiência histórica de transformação das condições de vida das trabalhadoras domésticas demonstra o poder que a organização autônoma tem. E as condições nunca foram as ideais para que se politizassem: estavam desumanizadas pelo racismo e pelo machismo; isoladas umas das outras, cada uma trabalhando em uma casa de família diferente; sem condições concretas de realizar greves; com pouca educação formal; conformadas e desalentadas. Mas a revelia de tudo, foram à luta.
Deyse Quinto integra o coletivo Brasil Vermelho e a Juventude do Partido dos Trabalhadores de Ilhéus. É professora da Secretaria de Educação do Estado da Bahia e mestranda em História pela Universidade do Estado da Bahia – Campus V.
Comments