Caio Pinheiro
Passados 135 anos da abolição do trabalho escravo, oficializada em 1888 pela Lei Áurea, que, em termos históricos-políticos, foi tão somente o reconhecimento do estado brasileiro acerca da impossibilidade da manutenção do trabalho escravo, dado a ação exitosa de escravos(as) contra os martírios da escravidão, ainda hoje, nós, afro-brasileiros, temos que lidar com as mazelas do sistema escravocrata, dentre as quais está o racismo e suas tentativas de apagamento, silenciamento e negação da África que, ao lado de outros referenciais socioculturais, constitui a identidade brasileira.
Para gerações de negros(as) desse país miscigenado (socioculturalmente fruto da mistura dos elementos indígenas, africanos e europeus), conquistar a dita ascensão socioeconômica significou e continua significando negar a África presente em seus corpos e imaginários. Numa sociedade que elegeu o branco enquanto padrão, e, portanto, uma visão de mundo mais afinada com referências europeias, perseguir o sucesso para negros(as) implicou virar as costas para a África presente não só em seus corpos, mas particularmente em suas subjetividades.
Contudo, à despeito das tentativas da escravidão e do racismo de higienizar a África em nós, ela resistiu. Resistiu graças a memória ancestral revivificada nos territórios de resistência. E é nesse sentido que devemos identificar os espaços de culto das religiões de matriz africana. Certo é que as religiões de culto aos orixás não são o único elo da resistência, mas sem dúvidas ocupam uma posição privilegiada, pois tiveram e têm um papel fundamental da manutenção em nossas subjetividades da cosmovisão D’África.
Nesse sentido, mesmo que não tenha se referido diretamente aos cultos de matriz africana, o antropólogo Kabengele Munanga, quando se referiu a luta pela emancipação do negro, considerou que a “identidade” constitui um aspecto central do movimento emancipatório do povo negro; por isso, nós, negros(as), devemos protegê-la, celebra-la e reivindica-la. Sob essa perspectiva, celebrar a sanção da Lei n° 14.519/2023, que cria o “Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matriz Africana e Nações do Candomblé”, é reconhecer a criação de mais um dispositivo legislativo criado pela pressão em benefício da negritude.
Sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei Federal 14.159 foi publicada no Diário Oficial da União no dia 6 de janeiro de 2023, instituindo o dia 21 de março como o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé a ser comemorado anualmente. A data teve inspiração no Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, escolhida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 21 de março em memória às vítimas do massacre de Sharpeville, na África do Sul, durante um protesto contra a segregação racial em 1960 e que causou a morte de 69 pessoas.
Bem, a lei 14.159 veio se somar a um conjunto de dispositivos legislativos que em termos estruturais vêm contribuindo para a valorização da população negra e combate ao racismo em todas suas facetas. No entanto, para nós, povo de terreiro, a lei em questão traz a ideia de alento. O reconhecimento por parte do estado da legitimidade das nossas práticas religiosas e do nosso contributo à identidade nacional, dá novo fôlego ao nosso ímpeto de existir.
Dado ao que devemos celebrar, vou tecendo o final dessa crônica falando do que de fato permitiu essa conquista, ou seja, o axé, que em Iorubá significa um poder invisível que transmite uma energia divina e intocável que as pessoas só pressentem. Segundo o babalorixá do Ilê Axé Ijexá, Ruy do Carmo Póvoas, o axé está posto no universo e sua fonte é Olorun, Deus criador, onipotente, onisciente, eterno e incriado, senhor de tudo e de todos. Então, que vivamos essa conquista permitida pela força do axé. Axé!
Caio Pinheiro é historiador, educador, escritor e militante do Movimento Negro.
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