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NÃO HÁ TERRA SEM ENFRENTAR OS MILITARES

Joelson Ferreira e Erahsto Felício- Teia dos Povos


Há uma janela de oportunidade no agravamento da crise republicana que vivemos. Uma janela para as esquerdas e para todas as pessoas e povos que lutam pela terra e o território. Trata-se, sem dúvida alguma, de um momento ímpar que nos convida à luta contra o poder dos militares neste país. Sejamos objetivos desde o início dessa nossa conversa: não há terra e território no Brasil sem o enfrentamento aos militares. Desde a gênese da formação do poderio militar, eles estão responsáveis por impedir o acesso dos povos à terra. Defender o sistema fundiário brasileiro foi o pecado original dessa corporação que tanto mal tem feito aos povos dessas terras.

Reprodução Teia dos Povos

Pensamos que há duas formas de explicar isso. A primeira e mais objetiva é entender que as forças militares, sobretudo as chamadas auxiliares (PM’s), são aquelas que empregam o uso da força para impor a reintegração de posse a pedido dos usurpadores das terras. Essas forças são também quase sempre onde os latifundiários recrutam seus novos jagunços: gente formada nos quadros das polícias militares, quando não são ainda policiais na ativa, e trabalham de segurança e de braço paramilitar do latifúndio. Os casos de grilagem no Oeste da Bahia exemplificam bem esse exemplo. Em março de 2021 geraizeiros de Formosa do Rio Preto (BA) se defenderam de jagunços que atacavam a comunidade para destruir benfeitorias e conseguiram render os invasores. Entre eles estavam quatro policiais militares que faziam serviços particulares para grileiros. Ainda no Oeste baiano naquele mesmo ano, descobriu-se que ao menos três policiais militares entre os envolvidos na morte do homem que denunciou o esquema de grilagem conhecido pela Operação Faroeste. A conhecida história de Marielle Franco nos lembra que esse traço não se aplica apenas ao latifúndio rural, pois a vereadora martirizada estava investigando grilagem urbana quando foi assassinada.

A segunda forma de explicar é pensar na origem histórica das forças militares. A própria PM da Bahia reconhece que sua história remonta a 1825. Sabe-se muito bem que a formação de tal força está diretamente ligada ao medo da rebelião do Quilombo do Urubu de nossa grande guerreira Zeferina. No caso do exército, fica explícito porque ainda honram o Duque de Caxias como seu patrono, lembrando uma vez mais que o assassino maior da Balaiada é a inspiração dessa força terrestre. Canudos e Contestado não nos deixam mentir que a maior expressão do exército brasileiro foi atacar seus próprios compatriotas. E a missão é sempre a mesma: defender o patrimônio das elites e impedir o povo de acessar a terra e o território. Agora estamos a investigar a situação de genocídio do povo Yanomami e Yek’wana, mas temos que lembrar que em maio de 2022 soubemos que o exército negou apoio à comissão parlamentar que queria visitar e conferir a situação de perto. Que foi no governo com mais militares desde a redemocratização que as invasões às terras indígenas ganharam tração e a destruição dos biomas Amazônia e Pantanal se intensificaram. Pois esse sempre foi um projeto político dos militares.

O crime organizado que campeia solto e vitimou Dom e Bruno, as pistas clandestinas na Amazônia, as armas que atravessaram as fronteiras ilegalmente, a nova política armamentista, a corrupção não investigada na Ditadura Civil-Militar de 1964, o incentivo desde aquela época ao garimpo, avião da FAB com cocaína, tudo isso tem a conivência, a omissão ou assinatura dos fardados. E fazem tudo isso com recursos públicos, pagos pela gente trabalhadora de nosso país. É preciso pensar nas estratégias de como parar esse aparelho repressivo antes que consigam dar o golpe que não conseguiram em 2022.

Na história, sempre que os governos dão alguma missão relevante para os militares brasileiros, eles retomam empoderados e dão golpe. O governo imperial os mandou para massacrar nossos irmãos e irmãs paraguaias (1864) e toda a ideologia positivista golpista que impôs a república se formou nas décadas seguintes. Mais tarde em 1956 o exército vai ajudar a repressão dos povos árabes na construção do Canal de Suez e na volta dão golpe de 1964. E por último o Brasil os envia para reprimir o povo do Haiti (Minustah) de 2004 e o exército participa, apoia o golpe em Dilma e a prisão de Lula. E pode observar que os principais nomes do generalato brasileiro que participaram do governo fascista estão entre os comandantes da operação no Haiti (Heleno, Azevedo e Silva, Tarcísio de Freitas e Santos Cruz).

E aqui temos que pontuar que se há uma continuidade histórica muito bem documentada é como a sistemática prática de violação de direitos, tortura, sequestro, execução, desaparecimento realizada na Ditadura Civil-Militar de 1964 consegue se manter na redemocratização apenas mudando o alvo. Se antes a militância de esquerda era a principal vítima, agora os corpos pretos e periféricos vão sofrer os mesmos tipos de crime cometidos por forças militarizadas do estado só que sem o clamor por Memória, Verdade e Justiça por parte das esquerdas que aceitaram e até participaram do genocídio preto. E, vejam, essa continuidade autoritária da perseguição ao inimigo interno tem um histórico ainda mais antigo com o processo de perseguição aos escravizados e egressos das escravidão. A manutenção, portanto, de uma ordem persecutória e repressiva dos povos periféricos obedece – tal como no período escravocrata – à demanda do capital para controlar e desvalorizar a mão de obra. O preto, a preta, violentada, perseguida, estigmatizada segue trabalhando, mas segue perdendo valor em seu trabalho, em sua condição de vida.

Contudo se no processo de imposição da república o exército queria ser o guia ideológico do povo, cravando seu positivismo como doutrina superior que guiaria a nação, hoje o poder de força dos militares não possui capilaridade no povo para construir uma liderança. Embora nunca aceitaram passar o poder da república para os civis, torceram o bico e tiveram que aceitar um mau militar como seu líder, beberam da idiotia eficiente de Olavo de Carvalho por falta de inteligência e sagacidade para propor algo ao povo e não lograram em quatro anos produzir um quadro que inspirasse politicamente a população ao seu ideário intelectual. Daí o uso do trabalho de base feito por algumas igrejas neopentecostais e algumas protestantes históricas que caíram na graça do fascismo. É esse trabalho de base igrejeiro que arregimenta e cria as condições para uma dissonância cognitiva absurdamente grave que vemos nas bases bolsonaristas. Basta uma passagem pelos hinos e louvores cantados nos ataques a Brasília do dia 8 de janeiro.

Um terceiro e último elemento se amasia nessa relação perversa: os financiadores, parte deles do agronegócio. Sabemos que as investigações sobre os ataques do dia 8 já chegaram a latifundiários. Embora enriquecidos com as políticas econômicas dos governos petistas, setores majoritários dos latifundiários odeiam as esquerdas. Há um enraizamento ideológico e um interesse econômico estrutural na defesa de suas propriedades, bem como na manutenção de uma política fundiária permissiva com a grilagem e destruição ambiental. Se eles são os nossos inimigos mais longevos, é preciso ficar claro que são eles quem os militares, em última análise, defendem.

Há aqui uma simbiose entre a estratégia de combate ao inimigo interno com a defesa da propriedade da terra e a construção de uma massa ideologicamente preparada para fazer na rua o que os militares e latifundiários ainda não têm coragem de fazer publicamente. E a tarefa de retomar a terra perpassa por enfrentar essa situação. Há que lembrar que esses três setores (militares, pastores milionários e latifundiários) cresceram muito graças às políticas dos governos petistas. Recordar isso é fundamental para saber o que empodera cada um e ir lutando contra isso. Ou seja: há que desfinanciar (e se poderia começar pelas previdência) os militares, forçar a democratização das terras e reencantar nossa gente para as utopias da construção do mundo novo nessa vida – não na próxima. Estamos pontuando que parte significativa de nossos problemas são dependentes de dinheiro público e qualquer governo minimamente sério deveria pensar em fazer melhor uso desse cortando o investimento nas forças armadas e o crédito para os grileiros e latifundiários em geral.

Não podemos seguir financiando a destruição de nossa terra. O projeto de país vendedor de matéria prima que precisa destruir nossos biomas e solos para isso é um projeto defendido pelos militares. Gente que avançou na desindustrialização e a primarização da economia que só solapa a natureza. Temos que tomar a terra, fazer educação, ciência e tecnologia para a emancipação dos povos. Mas nada disso é possível sem vencer os militares. Eis a tarefa dessa nossa janela de oportunidade histórica. Lutar todos os dias pelo fim do poder dos militares.

Que nossa gente dos povos e movimentos sociais não se iludam: há tarefas políticas urgentes enquanto ainda estamos cumprindo papel na sociedade civil dessa democracia. Derrotar politicamente os milicos é uma delas. Não haverá terra enquanto a baioneta das forças ainda estiverem apontadas para nós. Nossa luta passa por reconhecer esse obstáculo em nossa jornada e, portanto, temos que superá-lo com luta popular. Pelo fim do poder dos militares! Por terra e território, liberdade e dignidade!



A Teia dos Povos é uma articulação de comunidades, territórios, povos e organizações políticas, rurais e urbanas. Extrativistas, ribeirinhos, povos originários, quilombolas, periféricos, sem terra, sem teto e pequenos agricultores se juntam, enquanto núcleos de base e elos, nessa composição com o objetivo de formular os caminhos da emancipação coletiva. Ou seja, construir solidariamente uma Aliança Preta, Indígena e Popular.


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