É DAR CONTINUIDADE À LUTA PELA EMANCIPAÇÃO DA MULHER E LIBERTAÇÃO DE NOSSA CLASSE
Mariane Nunes
A capoeira, oriunda de uma experiência sociocultural de africanos e seus descendentes no país, muito caracterizada por seus elementos de resistência através, principalmente de corpos negros, possui em sua trajetória a expressão de uma diversidade étnica grande. Ao estudarmos e procurarmos registros que apontem a importância de figuras negras na história de nosso país temos algumas que se consolidaram enquanto símbolo de resistência nacional, se tornando um marco histórico no Brasil. Nesse sentido, a exaltação de figuras masculinas se tornará muito mais comum, apesar de termos muitas femininas que muito contribuíram nessa trajetória.
Em muitas culturas a posição da mulher sempre esteve atrelada a valores, costumes e práticas que puderam, ou não, variar com o tempo, por inúmeros motivos. Segundo Godinho (2006), as relações entre homens e mulheres, e das pessoas entre si, dependem do modo com que cada grupo se relaciona. Conforme Muraro (1993), com a instalação do patriarcado, as relações entre os sexos, tornaram-se relações de medo e instaurou-se o predomínio dos homens sobre as mulheres. Instalou-se também a violência e a competição em todos os níveis, contribuindo, assim, para que a humanidade se dividisse em função das relações de exploração, violência e dominação (SANTOS, 2011, p. 20).
A presença feminina no Brasil pode ser lembrada através de figuras que lutaram por muito tempo no período da escravidão e em locais de resistência, como foi o Quilombo dos Palmares. Dandara, apesar de ainda ser retratada como a mulher do líder quilombola Zumbi, foi e ainda é uma grande referência para luta das mulheres, em especial as mulheres negras. Em Palmares, ainda no século XVII, a capoeira se fazia presente no cotidiano de homens e mulheres que ali habitavam. Infelizmente, não só a história de Dandara, mas de muitas mulheres capoeiristas são difíceis de ser encontradas, devido aos poucos registros sobre as mesmas ao longo da história do Brasil. A maioria dos textos que abordam sobre a perpetuação da capoeira no país apontam as mulheres sendo marginalizadas e/ou secundarizadas em muitos espaços onde a capoeira esteve presente.
Se observarmos a história das mulheres na sociedade brasileira será perceptível que até os dias de hoje a violência e o preconceito são reproduzidos, mesmo que em menor grau ou mais camuflados, que em outros períodos da história. Na capoeira, ao passo que o número de mulheres cresce, aumenta também a necessidade de compreendermos o que significa ter estes corpos desenvolvendo o jogo da capoeira. São mulheres que podem estar presentes nas mais distintas classes sociais, com situações econômicas variadas e perspectivas semelhantes ou até mesmo diferentes ao interpretarem o que é a capoeira na vida de cada uma delas.
Quem vive de capoeira, possui na mesma algo que faz parte de suas respectivas rotinas, mas não necessariamente possui ligação direta com a sobrevivência de determinadas pessoas. Uma professora de capoeira que possui um projeto e/ou academia junto à outra profissão vai encontrar menos dificuldades até para manter o grupo e trabalho que desenvolve com a capoeira, pois, mesmo que a capoeira seja importante em suas vidas e que elas não abram mão de ministrar suas aulas, por óbvio, não dar aula de capoeira não altera financeiramente sua vida. E como uma mulher não negra, não pertencente às camadas populares, as chances de conseguir um emprego em sua área ou até mesmo em algo distinto são maiores que para outras mulheres, principalmente sendo elas negras e periféricas, que desenvolvem trabalhos sociais.
Essas dificuldades normalmente são encontradas por quem precisa sobreviver de capoeira, já que não é somente o salário e/ou mensalidade que conta quando iremos ver o que muitos educadores passam ao desenvolver estes trabalhos. Em suas trajetórias e contato com o mundo da capoeira, muitas mulheres chegam a ser desestimuladas, quando não desistem ainda no início. A relação e opinião da família, a constituição de suas próprias famílias, relacionamentos com capoeiristas e até a dinâmica que envolve estudar, trabalhar, ser mãe e, em alguns casos, o contato com religiões que não são de matriz-africana fazem com que muitas mulheres encontrem obstáculos ao conhecerem e quererem dar continuidade à prática da capoeira. Por, historicamente ser este um espaço de predominância masculina, as relações de poder e o próprio julgamento da sociedade acabam exercendo influência na decisão de continuar ou não praticando capoeira.
A partir da década de 1970 a capoeira já começa a ser mais vista em inúmeras representações do que é a cultura afro-brasileira. Ao mesmo tempo, apesar de já termos indícios de mulheres capoeiristas, ainda levaremos ao menos mais duas décadas para vermos mulheres sendo representadas em pinturas, músicas de capoeira que falem diretamente sobre a atuação das mulheres como capoeiristas ou até mesmo para vermos mulheres se tornando líderes de seus respectivos grupos. Assim, a conquista de espaço da mulher na capoeira, de certa forma, acompanha a luta das mulheres trabalhadoras, que dentro da sociedade de classes organiza suas pautas e/ou compreendem a importância de sua inserção em determinados lugares. Mas essas dificuldades já apontadas ainda se farão presentes em muitos locais onde as mulheres se inserem na capoeira.
Algumas mudanças se tornam mais perceptíveis, como aponta Rosângela Araújo, conhecida também como mestre Janja, que nos mostra que a partir dos anos de 1980/90 já teremos mulheres muito mais ativas nas rodas e treinos de capoeira. A mulher passa a não ser mais um “sujeito estranho” nestes espaços, chegando a representar quase metade dos praticantes de capoeira. Entretanto, uma das maiores críticas em torno da capoeira se dá devido às relações sociais e econômicas que são postas num processo dialético que a capoeira Regional nos traz. Se por um lado a capoeira Regional é legitimada e reconhecida nacionalmente e se expande em muitos locais, como na Bahia, por outro é esta capoeira que, em determinados espaços e contextos, muito se afasta de uma raiz tida como ancestral, perdendo de forma significativa elementos de uma tradição que a capoeira Angola tenta preservar.
A disputa da tradição e até mesmo os conflitos existentes entre preservar e/ou modificar determinados elementos da cultura negra no Brasil são postos em discussão, gerando grandes debates envolvendo capoeiristas dos estilos Angola e Regional. Dentro dos estilos que a capoeira possui, nem todos os mestres de capoeira encaram a tradição da mesma forma e este é um apontamento fundamental para aqueles que pretendem compreender que tradição é esta que se encontra (ou pode se encontrar) num possível processo de disputa. Alguns mestres enxergam tradição como o respeito que se deve ter aos mais velhos, numa manutenção do que se projeta no que o tempo de capoeira que uma pessoa pode possuir e os ensinamentos que ela vem a ter. Esse entendimento é muito comum dentro da capoeira Angola, mas também é refletido pelos praticantes da capoeira Regional, que veem em seus mestres e nos mais velhos que habitam a roda de capoeira “pessoas maiores” ou “com maiores bagagens” dentro deste espaço.
Uma análise interessante feita pela Christine Zonzon, professora e pesquisadora da UFBA, utiliza a “tradição” enquanto processo dinâmico de articulação de novos atores e ideologias, no processo de exploração de problemas relacionados ao gênero, presentes dentro do universo da capoeira levando em consideração as práticas e os valores tradicionais projetados, construídos e reproduzidos neste espaço. Para os iniciantes na capoeira tudo que é vivenciado e o próprio processo de convivência coletiva é fundamental para orientar esse aprendiz no que diz respeito ao comportamento que os capoeiristas irão possuir. Praticar capoeira não se trata somente de aprender os movimentos físicos, deflagrados e desenvolvidos em forma de golpes. Significa incorporar o modo de ser e agir que os capoeiristas reproduzem e constroem. A experiência corporal se une então com a experiência de vida que a capoeira nos traz.
É dentro desse conjunto que a capoeira cria capoeiristas, do estilo conhecido como Angola, valorizam e disseminam muito mais a malícia, tida como algo importante e muito desejado no jogo da capoeira angola. “Malícia” é um termo utilizado pelos capoeiristas para expressar algo que se almeja adquirir através da prática constante da capoeira. Cada estilo de capoeira vai encarar essa malícia, a mandinga e outros elementos a partir do modo como as tradições são disseminadas. Nesse sentido, se analisam tradições de maneira plural, pois, a capoeira possui muitos grupos e essa diversidade produz vários sentidos e significados para os capoeiristas, que vai desde como é organizada a bateria que compõe a roda até os rituais que podem ser reproduzidos dentro deste espaço.
Por ser praticada de formas distintas, a capoeira chegou a ser retratada de formas diferentes por muitos autores. Essa crítica à capoeira Regional demonstra que muitas pessoas não aceitaram de maneira tão rápida ou viram com tanta satisfação a criação da capoeira regional baiana de mestre Bimba. Posicionamentos como este demonstram que muitos intelectuais se posicionavam no intuito de reforçar a defesa pela manutenção da capoeira criada por mestre Pastinha, já conhecida no país e praticada em sua maioria por pessoas negras, apontando que a capoeira Regional se refletia também como um processo de reorganização dos capoeiristas tradicionais. Mas é preciso nos atentar ao fato de que posicionamentos de não capoeiristas, não necessariamente refletem como os capoeiras viam a criação da Capoeira Regional Baiana e sua contribuição para a perpetuação da capoeira no país, para homens e mulheres.
Todavia, apesar das contradições históricas e do próprio desafio que muitas mulheres sempre encontraram no processo de inserção e permanência nestes espaços, principalmente sendo elas mulheres negras e trabalhadoras, a partir do final do século XX já encontramos muito mais mulheres professoras, contramestres e mestres de capoeira, bem como mulheres que mesmo com uma graduação menor conseguem iniciar e tocar atividades e projetos que envolvem a capoeira.
Os trabalhos que estas mulheres desenvolvem servem como um processo de continuidade da capoeira que se desenvolve há anos em muitas cidades, se fortalecendo em muitos estados. Sendo assim, a Bahia é o exemplo de um estado onde essa capoeira se projeta de maneira muito importante. Em parceria com outras mulheres de cidades da região e locais mais afastados do estado da Bahia, as atividades que atingem principalmente a juventude são construídas com o apoio das próprias capoeiristas. Devido a algumas pesquisas que vem sendo desenvolvidas nos últimos anos, que trabalham gênero e capoeira, tem sido mais comum discutirmos sobre os elementos que compõem a capoeira e os desafios que muitas mulheres possuem num espaço ainda de predominância masculina.
Atualmente a Universidade Federal da Bahia (UFBA) tem sido uma das universidades que mais tem voltado atenção para estas questões, principalmente por possuir professoras que além de serem capoeiristas, unem os temas: gênero, tradição, malícia, musicalidade e ancestralidade, como elementos fundamentais de suas pesquisas. E assim:
"É no cotidiano de afazeres e de responsabilidades que a mulher desenvolve sua luta por igualdade e direitos de desempenhar funções e assumir papéis que representem sua capacidade intelectual de produzir conhecimentos e propor discussões acerca daquilo que é tão importante para ela quanto para a sociedade." (SANTOS, 2011, p. 36).
Assim, a mulher tem ocupado um espaço fundamental para que tenhamos a possibilidade de compreender que as conquistas na capoeira também podem se refletir como uma parcela de contribuição para a sociedade. A mulher representa a importância da luta por ideais e alternativas que contribuam no crescimento e perpetuação da capoeira no mundo. Apesar da resistência masculina ainda ser perceptível, é preciso saber lidar até com esta resistência, que também pode partir de mulheres, que ao naturalizarem com o processo de apagamento e subordinação, podem demorar a compreenderem a importância dos papéis que elas desempenham nestes espaços e da necessidade da organização das mulheres capoeiristas.
A luta contra o modelo imposto para o controle dos corpos femininos é fundamental para romper com as regras impostas, fazendo com que os gêneros não se sobreponham dentro da sociedade. Apesar dos desafios ainda existentes esta é uma luta necessária para efetuar o fim das desigualdades dentro da capoeira e na própria sociedade de classes. Lutar pelo fim das desigualdades dentro da capoeira é dar continuidade à luta de libertação de um povo. A verdadeira liberdade só será alcançada quando as mulheres realmente possuírem plenas condições de se emanciparem dentro e fora deste espaço.
Mariane Nunes, também conhecida como Comuna Deusa, tem 25 anos, é historiadora, capoeirista, poetisa e defensora de uma educação verdadeiramente popular. Integra o Coletivo 7, um coletivo de mulheres artistas, potentes e perpetuadoras da cultura popular, preta, antirracista e anticapitalista.
Algumas referências:
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GODINHO, T. M., Traços da Violência Praticada Por Mulheres Brancas Contra Mulheres Negras no Período Escravocrata, em Fazendas No Estado De Goiás. in: Seminário Internacional Fazendo Gênero (7. : 2006 : Florianópolis, SC) Fazendo gênero 7 : gênero e preconceitos: anais eletrônicos [recurso eletrônico] / Seminário Internacional Fazendo Gênero ; Florianópolis : Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.
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MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio. Rio de Janeiro, 3 edição. Rosa dos Tempos, 1993.
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SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987.
SANTOS, Silvia Macêdo dos Anjos. Mulher e Capoeira: reflexões da convivência, lugar social e participação na diversidade. In: Grupo Conviver (org.). Diversidade e convivência: construindo saberes. Salvador: EDUFBA, 2011.
ZONZON, Christine Nicole. Gênero, Malícia e Tradição. In Pensando a Capoeira: Dimensões e Perspecctivas. Org: Simplício e Pochat, Rio de Janeiro: MC&G, 2015.
ZONZON, C. N. Nas rodas da capoeira e da vida: corpo, experiência e tradição. Salvador: EDUFBA, 2017.
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