Erbson Cardoso
Em 2018, o mundo desabou sobre os meus pés cansados; o fascismo havia chegado ao poder, e mais uma vez, pela via democrática (a burguesia gosta de flertar com os ismos), o que revela o caráter patológico de suas estruturas sociais; a democracia moderna e seu sistema representativo é uma estrutura burguesa/capitalista e permite a exploração do homem sobre o homem... Há que se pensar seriamente sobre essas questões e aperfeiçoá-lo! Fato é que, como Hitler, Bolsonaro chegou ao poder. E confesso que num esforço de tentar racionalizar os porquês, quedei-me desesperado, mergulhado num pesadelo concreto; e como pesava e esmagava o peito, como historiador, eu sabia a extensão do que estava por vir, e um sentimento de urgência tomou-me: estava pronto para a guerrilha. A ampulheta havia sido virada e os grãos de areia já caíam como corpos empilhados, anunciando os 700 mil, e assim como na Alemanha, seduzida pelo nazismo, a nação brasileira permitiu que a barbárie fosse convidada à nossa casa. Afinal, estava travestida de Deus, pátria e família (quando misturada à política e suas relações de poder, é a tríade maldita; fujam, nada de bom vem daí); e foi assim, que num ritual satânico, o neoliberalismo burguês trepou com o fascismo e pariu o Bolsonarismo. E vimos as fileiras do inimigo crescer dia a dia: a vizinha, o tiozinho, o guarda da esquina, tantos rostos e nomes conhecidos esclarecidos, até; sim, não é a ignorância que seduz, é o espelhamento, é o reflexo das entranhas da casa-grande guardado naquela caixinha de Pandora da alma. Sim, o mal sempre caminhou conosco, sempre existimos, nós e eles, mas no baile de máscaras da democracia gilbertofreyriana, convivíamos, bailávamos, até o dia da ascensão: o mal chegara aos trending topics do Twitter e de mãos dadas às fake news (que encontraram ouvidos e corações ávidos, sedentos, terra fértil) e o necro-Estado banhado no sangue dos nossos imolados no altar da pátria matou quantos pôde. Mataram a mata, seus guardiões e tradições. O arame farpado conteve o anseio da terra (“malditas sejam todas as cercas!”, bradava D. Pedro Casaldáliga), coturnos subiram morros e vilelas – é só mirar na cabecinha e pow! Ah... era só um guarda-chuva, sinto muito, estamos trabalhando para melhor servi-los! Matou de asfixia a educação, matou de fome, um pouco por dia, matou no camburão, câmara de gás repaginada, matou o imigrante a pauladas no calçadão e por fim... os terraplanistas mataram no seu afã negacionista a Ciência e a reboque milhares de histórias viraram memória em sepulturas coletivas. Não consigo respirar, é impossível respirar na fila do osso, do soro de leite, do olhar vazio, desalentado à espera de nossa vez, quando a solução final dos nazistas se abateria sobre nós...
É tempo de organizar, tempo de faxina, daquelas pesadas de fim de ano... e creiam, não será fácil. O trabalho começa e todos os braços e abraços ainda serão poucos. Há muito para desinfeccionar. Mas entendam, não falo de conciliação. Conciliação é o canto da sereia, nos arrastará para o fundo. Não existe conciliação possível com o fascismo.
A História gosta de pregar peças, espera o último segundo antes do precipício para estender uma nova folha em branco diante dos nossos olhos surpresos. É isso, a História não tem fim, só recomeços, novos arranjos, mas não se iludam, as velhas peças e o mesmo jogo numa nova partida, a chance, para os sobreviventes, de ser e fazer diferente cada jogada ou repetir os erros dos desmemoriados, dos que preferem esquecer e anistiar. Precisamos aprender a acertar as contas com o passado, caso contrário a fatura chega e com juros. E se mais uma vez a Esperança subiu a rampa numa grande catarse coletiva, um sentimento tomou a multidão numa confissão de fé inquebrantável, num grande coro de muitas torcidas: Eu acredito! Sentimentos são substantivos abstratos, mas nem sempre. A felicidade concretizou-se, tornou-se palpável e filas transformaram-se numa grande ciranda de amanheceres vestidos de arco-íris num caleidoscópio de porvir. Coisa mágica é a esperança revolucionária: ela faz acontecer. Tom Jobim já cantava "é impossível ser feliz sozinho". Essa é a grande lição: a felicidade é um bem COLETIVO. Não posso escrever sobre o que virá, porque o futuro ainda não nasceu. Mas sei que é tempo de reconstruir ,de cerrar fileiras, não desmobilizar. É tempo de organizar, tempo de faxina, daquelas pesadas de fim de ano... e creiam, não será fácil. O trabalho começa e todos os braços e abraços ainda serão poucos. Há muito para desinfeccionar. Mas entendam, não falo de conciliação. Conciliação é o canto da sereia, nos arrastará para o fundo. Não existe conciliação possível com o fascismo. Não é tempo de perdão. Certa vez, li que perdoar não é esquecer. Esquecer é falta de memória. Perdoar é não sentir mais dor quando lembrar e a menos que tenhamos nos tornado desmemoriados ou insensíveis, repito, não é tempo de perdão. É tempo de Justiça. Só assim, teremos alguma chance de sair desse eterno déjàvu.
Escrevo, como disse Brecht, para os que virão depois de nós, para que entendam, que a guerra não foi vencida: eles retornaram para o esgoto, mas estão lá, à espera de um vacilo, porque a cadela do fascismo está sempre no cio, e seus filhotes caminham e comem conosco: por isso vigiai. Não sabereis nem o dia nem a hora, mas eles virão arreganhando seus dentes. Estai fortes, fortalecei-vos na luta coletiva, no sorriso do companheiro, no suor da lida, nos amores em suas múltiplas formas e sabores. Por hora, fizemos as pazes com nossa história, não somos mais a geração que perdeu para o fascismo. Somos a geração que perdeu, mas soube transformar o luto em luta. Somos a geração que derrotou o fascismo. Por hora, o amanhã descortina-se sobre nós cheio de promessas: "vamos lá fazer o que será".
Erbson Cardoso Silva, em 8 de janeiro de 2023, uma manhã preguiçosa de domingo.
Erbson Cardoso é diretor da rede estadual de educação e ativista social.
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