Ingrid Macedo
Na terça-feira (07) o Jornal da Band, programa da Rede Bandeirantes, exibiu uma matéria de teor racista em que chamava os indígenas Pataxó de “falsos indígenas” e “criminosos”, fazendo acusações diversas às famílias que habitam os territórios tradicionais do extremo-sul da Bahia (assista aqui). A reportagem, realizada pelo jornalista Valteno de Oliveira, foi exibida também na quarta-feira (8) em outro canal do Grupo Bandeirantes, o Agromais, com uma nova edição e posteriores acusações em uma tentativa de criminalizar os indígenas. Na ocasião, o apresentador do programa Agronotícias chega a chamar de “ato de terrorismo” a luta pelo direito originário às terras tradicionalmente ocupadas (assista aqui).
A matéria trata das retomadas nas Terras Indígenas Comexatibá (identificada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas pelo Despacho 42 em 22/07/2015¹) e Barra Velha do Monte Pascoal (identificada pela Funai em 27/02/2008²). A identificação das terras tradicionalmente ocupadas é a etapa do processo de demarcação em que são realizados estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais que fundamentam a delimitação de uma terra indígena. Após a conclusão e aprovação destes estudos, um resumo do documento é publicado no Diário Oficial da União.
Desde então, as famílias residentes nos territórios aguardam há 8 e 15 anos, respectivamente, pela conclusão das ações demarcatórias. No resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Comexatibá, as antropólogas responsáveis afirmam: “as referências ao etnônimo Pataxó no extremo sul da Bahia remontam ao século XVI, mais precisamente ao ano de 1577, quando a presença deste povo na faixa litorânea da região entre os Municípios de Porto Seguro e Prado foi registrada.”. O reconhecimento das terras tradicionais Pataxó pelo órgão indigenista é resultado de uma luta contínua e histórica.
Segundo Valteno de Oliveira, os Pataxós querem ampliar as áreas previamente demarcadas para “ocupar terras públicas e privadas”. Ainda, em participação no programa Agronotícias, o jornalista cita também a tese do marco temporal como um motivo para a não demarcação. Os povos indígenas têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (Art. 231 da Constituição Federal). Sobre a noção de direito originário, o mestre em direito Lázaro Moreira da Silva fez o seguinte esclarecimento: "O termo originário designa um direito anterior ao próprio Estado brasileiro, uma posse congênita, legítima por si mesma, ao contrário da posse adquirida que precisa preencher os requisitos civilistas para o reconhecimento”. Destaca-se, também, que após a validação do processo administrativo de demarcação pela homologação de um Decreto Presidencial, uma terra indígena se torna propriedade da União com usufruto indígena, não propriedade privada.
Grandes partes das terras ancestrais do povo Pataxó são atualmente latifúndios usados para monoculturas (como as do eucalipto, café e pimenta do reino), para a agropecuária extensiva ou são áreas ocupadas com empreendimentos do ramo de turismo, uma das principais atividades econômicas da região. Contraditoriamente, a atividade turística também está fortemente ligada a problemáticas ambientais e sociais: o que se observa é cada vez mais uma operacionalização predatória que, articulada a outros fatores, gera efeitos impactantes como a marginalização da população nativa, crescimento populacional acentuado, especulação imobiliária, precarização e exploração do trabalho, crescimento urbano desordenado, precariedade de infraestrutura urbana, aumento da violência e da criminalidade e a devastação da vegetação primaria. De fato, a população indígena denuncia que os níveis de desmatamento da Mata Atlântica, apicuns e manguezais crescem continuamente, colocando a biodiversidade em risco e ameaçando as reservas de água doce da região. Neste sentido, se fez necessária a estratégia de autodemarcação das terras, com o objetivo de pressionar as autoridades competentes pela regularização das áreas tradicionalmente ocupadas, além de visar a defesa, recuperação e proteção do território originário.
Na reportagem exibida no canal Agromais, a emissora reproduz vídeo de dois caciques, divulga os seus nomes, chamando-os de “falsos caciques” e veicula mais uma mentira em rede nacional. As falas caluniosas colocam em risco a vida dos indígenas em questão e, consequentemente, de suas famílias e aldeias.
O argumento de que os nativos seriam “falsos índios” é comumente utilizado durante conflitos para deslegitimar as pautas indígenas e influenciar negativamente a opinião pública em relação às populações originarias. De fato, é possível ver que a postagem das reportagens no Youtube motivou comentários racistas e discursos de ódio.
Negar o pertencimento étnico é uma estratégia para que o direito originário às terras seja contestado. Por exemplo, em uma mobilização feita por empresários do agronegócio em Itamaraju, em agosto de 2022, era possível ler uma afirmação desta natureza em uma das faixas exibidas durante o bloqueio feito na BR-101.
Deslegitimar o pertencimento étnico é violar o direito indígena à autodeterminação, segundo o qual todo povo estabelece livremente seu estatuto político, escolhendo seu modelo de desenvolvimento econômico, social e cultural, sem opressão e submissão a qualquer forma de colonialismo. Portanto, não cabe à Rede Bandeirantes (e a qualquer outra instituição, pública ou privada, ou individuo não-indígena) o estabelecimento de critérios de pertencimento e reconhecimento étnico de pessoas indígenas, mas sim ao próprio povo originário, coletivamente e de maneira autônoma.
Em um de seus pontos mais incoerentes, a reportagem culpabiliza a própria população indígena pelos assassinatos de jovens Pataxó nos conflitos recentes, são estes: Gustavo Silva da Conceição (14 anos), assassinado em 04/09/2022 na T.I. Comexatibá; Nawy Brito de Jesus (16) e Samuel Cristiano do Amor Divino (25), assassinados em 17/01/2023 na BR-101, limite da T.I. Barra Velha do Monte Pascoal.
Apesar da afirmação difamatória, eis o desdobramento das investigações dos assassinados: em outubro de 2022, 3 policiais militares³ foram presos por suspeita de envolvimento na morte do adolescente Gustavo, acusados em uma ação penal que apura suposto crime de genocídio e associação ao genocídio. Já em 30 de janeiro de 2023, o Juiz Federal do TRF1 – Subseção Judiciária de Teixeira de Freitas/BA concedeu a Liberdade Provisória sem fiança a um dos acusados. Também em janeiro de 2023, foi preso um soldado da Polícia Militar⁴, suspeito de participar das mortes dos dois jovens indígenas, Nawy e Samuel. O soldado, lotado na 87ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM), prestava serviço de segurança particular na região, segundo as investigações.
Em suma, os policiais militares não estavam à serviço oficial em nenhum dos casos. Os assassinatos se deram em decorrência de ataques premeditados às retomadas e os acusados estavam trabalhando na segurança privada de latifundiários.
As famílias indígenas da região vivem há vários meses sob ataques frequentes, em grave situação de insegurança e vulnerabilidade. Os nativos denunciam continuamente atos de violência física, perseguição, ameaças de morte, tentativas de expulsão por parte dos pistoleiros e disparo de armas de fogo como forma de intimidação. Uma das fazendeiras entrevistadas pelo Jornal da Band insinua que os constantes disparos que se ouvem nas áreas de conflito são efetuados pelos Pataxó, quando múltiplos relatos das famílias indígenas, incluindo vídeos diversos, denunciam a tática dos pistoleiros em atirar frequentemente nas casas e nos arredores das retomadas para intimidar e afugentar os indígenas. Além disso, numerosas denúncias junto aos órgãos públicos responsáveis têm sido encaminhadas por meio de diferentes organizações indígenas e indigenistas.
Construindo uma narrativa do ponto de vista de grandes proprietários de terra, as reportagens ocultaram um fato concreto e histórico da região: as milicias rurais, grupos de pistoleiros (dos quais fazem parte também policiais) que atuam na defesa dos interesses de grandes empresários e proprietários de terras. Em entrevista ao portal de notícias Metrópoles, José Cláudio Souza Alves (Professor da Universidade Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ e estudioso de milícias no Rio) declarou: “são grupos que se estruturam dentro da estrutura do estado, recebem financiamento de empresários e comerciantes, são treinados com nossos impostos para praticar danos à vida alheia. (…). Estão controlando territórios a partir dos interesses de grupos ligados ao agronegócio.”. Os jornalistas se apoiam também na imagem de um cacique que é contra a luta pela demarcação dos demais territórios. Tendo o território de sua aldeia já regularizado (T.I. Águas Belas), o indígena se alinha com os interesses dos fazendeiros para defender seus próprios interesses econômicos e acordos pessoais, se afastando da coletividade e unindo-se ao coro que difama e legitima a violência cometida contra os seus. Repudiado pelos demais caciques e lideranças da região, é o único a receber das emissoras a validação de sua identidade étnica, sendo titulado pelos jornalistas como “verdadeiro cacique Pataxó”. Aqui se retoma o conceito do “bom selvagem”⁵ utilizado no período colonial nos processos de catequização e assimilação cultural, em que apenas o "índio" dócil e passivo (submetido aos interesses coloniais) é validado como legítimo, enquanto o nativo que reage e se rebela é taxado de hostil e de "falso índio", justamente por não condizer com os padrões de comportamento e interesses da sociedade dominante.
O Jornal da Band exibiu ainda uma entrevista com Rodinei Candeia, Procurador do Estado do Rio Grande do Sul, que defende que o problema da região são as demarcações, afirmando que no Brasil existe uma "indústria do laudo antropologico que sustenta as ONGS que mobilizam". Há anos, Rodinei sustenta que “existem muitas demarcações irregular com mentiras dos antropólogos”⁶. O procurador tem um histórico de defesa dos interesses ruralistas contra a demarcação de terras indígenas e, por exemplo, apoiou a nomeação do delegado da Polícia Federal, Marcelo Augusto Xavier, para a presidência da Funai, durante o governo Bolsonaro. Diferentes lideranças locais se pronunciaram contra a atitude racista das emissoras do grupo Bandeirantes, entre estes o cacique Aruã (presidente da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia – FINPAT) que repudiou a reportagem: “essa matéria é criminosa, difamatória, racista e caluniosa. Não é a primeira vez que a TV Band tenta difamar os indígenas aqui da região. Criminosos são os fazendeiros que mandaram matar Gustavo, Carloni, Nawir e Samuel. Prenderam apenas aqueles que apertaram o gatilho, mas os verdadeiros criminosos estão soltos”. Também, Agnaldo Pataxó HãHãHãe (coordenador geral do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia – Mupoiba) afirmou que a matéria tem o claro objetivo de “colocar a sociedade e a população regional contra o povo Pataxó”.
Pronunciamento do cacique Aruã, presidente da FINPAT. Reprodução: Instagram @cacique_arua. Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cpkj_vvDVBK/.
Na terça feira (14), a Defensoria Pública do Estado da Bahia e a Defensoria Pública da União divulgaram uma nota conjunta para manifestar preocupação e repúdio a respeito das falsas acusações. Como também organizações indígenas locais e nacionais se mobilizaram legalmente contra a atitude caluniosa dos programas: o Movimento Indígena na Bahia (MIBA) solicitou uma audiência com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para tratar da situação dos Pataxó, assim como fez um pedido extrajudicial à emissora para obter o direito de resposta. Já a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) entraram com uma representação no Ministério Público, exigindo o direito de resposta. Caso a Band não atenda aos pedidos extrajudiciais das lideranças locais, terá que responder judicialmente pelas calúnias.
¹ Diario oficial da União, 27/07/2015 - Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Comexatibá
³ Justiça concede liberdade provisória para PM suspeito de envolvimento em morte de indígena - Itamaraju Noticias
⁴ PM suspeito pelas mortes de dois indígenas é preso em Teixeira de Freitas - Jornal Correio ⁵ "Primitivo hostil" x "Bom selvagem" O loop infinito dos esteriótipos coloniais - Socióloga Laís Munihin
⁶ Procurador apoia delegado na funai e dispara “existem muitas mentiras” - JD1 Notícias
Ingrid Macedo, de nome indígena Juacema, pertence ao povo Pataxó, é artesã, comunicadora popular e integra o coletivo Brasil Vermelho.
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