Caio Pinheiro
Enfim, chegou o 20 de novembro, dia da “Consciência Negra”, data historicamente alusiva à morte de Zumbi dos Palmares, figura de relevo na luta contra a subjugação do povo negro. Contudo, para além de um marcador histórico, o “20 de novembro” deve ser encarado por nós, negros e negras, como um momento de imersão, durante o qual precisamos refletir acerca dos limites e possibilidades de “ser negro” num país de passado escravocrata no qual o racismo continua contaminando nossas relações sociais.
Sim, no imaginário brasileiro ainda é viva a ideia de que vivemos num paraíso racial. O Brasil, por essa perspectiva, é um exemplo de sociedade marcada por relações interraciais harmônicas, onde negros, índios e brancos têm as mesmas chances de acesso à dignidade humana, e, por isso, a miséria que atinge mais intensamente os afrobrasileiros e ameríndios não pode ter na raça um elemento justificador.
Essa perspectiva, que há muito justifica em favor dos brancos as assimetrias sociais que marginalizam em particular os afrobrasileiros, possui como fundamento a “ideologia da democracia racial”. Segundo esse suporte ideológico, se vivemos numa sociedade na qual imperam relações interraciais harmônicas, não se justifica destacar a “raça” como um marcador social que interdita as possibilidades de ascensão socioeconômicas dos negros. Assim sendo, “a miséria do negro é problema do negro”!
E assim, de maneira acanalhada, os beneficiários da democracia racial empunham o discurso liberal da “meritocracia” para justificar o fato de os brancos serem maioria nos espaços de poder e no exercício de profissões prestigiadas socialmente. Controlando instituições como a escola e a mídia corporativa, a branquitude apologista da meritocracia conseguiu universalizar sua visão de mundo, ao tempo em que naturalizou a marginalização de negros e negras.
Mas hoje estamos cientes da farsa meritocrática. Como realça o professor Silvio Almeida na obra Racismo Estrutural (2019), a produtividade e a eficiência não podem ser invocadas como fatores explicativos das diferenças no acesso de negros e brancos ao poder econômico, na medida em que as estatísticas mostram que, independentemente da produtividade, pessoas negras são preteridas/interditadas em suas possibilidades de ascensão.
Por tais questões, no “Dia da Consciência Negra” precisamos nos permitir um hiato de reflexão sobre o “ser negro” em uma formação social onde o racismo é estrutural. Fiquemos atentos para a branquitude. Falo que negros e não negros antirracistas precisam observar de soslaio o discurso que superestima os brancos através da superestimação dos negros, que, nesse sentido, define a branquitude.
É certo que conquistamos muito, porém ainda há um longo caminho a ser percorrido para que possamos construir uma sociedade pautada na eliminação do racismo e das iniquidades correlacionadas. Veja, essa crônica pode parecer eivada de ódio e revanchismo. No entanto, para mim, homem politicamente negro, a despeito do meu ascenso, e, por isso, uma exceção, a luta está longe de findar, pois aquilombamento é isso.
Isto posto, termino esse desabafo com palavras que, embora forjadas por outra cabeça, tomo como minhas. Nesse sentido, são necessárias o dito por Luiza Brasil, jornalista, pesquisadora de moda e cultura, bem como ativista do Movimento Negro, quando refletiu no seu mais recente livro Caixa Preta (2022), que ‘’se falamos de abismos sociais e desigualdades de acesso entre brancos e pretos, isso não é devido ao acaso ou a pouco esforço. É a falta de reparação histórica que respinga em vários setores da sociedade, que sempre nos invisibilizam e excluem com uma naturalidade inquestionável.’’
Axé!
Caio Pinheiro é historiador, educador, escritor e militante do Movimento Negro.
Commentaires