Pedro Carrano
Mesmo em um contexto geral conservador, o cenário político no continente latino-americano tem apresentado algumas alterações com velocidade, no rastro da crise econômica acentuada, com a pandemia de covid-19.
Entre os países do continente, a Colômbia cumpriu o papel de cabeça de ponte do governo dos EUA
Em 2015, por exemplo, há somente oito anos, falávamos com preocupação sobre a onda conservadora e neoliberal que passava a derrubar governos progressistas que se haviam consolidado ao longo do final dos anos 90 e durante a primeira década dos anos 2010.
Os governos de Kirchner, Dilma Rousseff, Evo Morales (antes disso, Lugo e Zelaya) eram vítimas de golpes que, em comum, pautaram a retomada do programa neoliberal e imperialista no continente, abrindo espaço também para o desgaste institucional e permitindo a ascensão e consolidação de candidaturas e organizações de extrema-direita hoje numa série de países.
Hoje, certamente, já foi avaliado como um sinal positivo o cenário de governos que emergiram após a insatisfação popular com o neoliberalismo, nos quais as massas optaram, nas urnas, por outro caminho, em eleições polarizadas. No entanto, esses novos governos já enfrentam uma série de dificuldades – como já analisamos no caso dos governos Boric, no Chile, Castillo, no Peru e Fernandez, na Argentina.
Entretanto, a contratendência vem justamente da Colômbia, país do qual nem sempre a esquerda brasileira teve informações aprofundadas e acompanhamento, e que agora demarca importantes caminhos com o exemplo do início de governo de Gustavo Petro e Francia Márquez.
Integrantes do Pacto Histórico, uma composição ampla, porém com posicionamento no seu interior por parte da esquerda e organizações populares, o governo tem se colocado para a) enfrentar problemas históricos; b) convoca a população a fortalecer suas pautas, em meio a um congresso e conjuntura internacional desfavorável c) conta com o fato de empunhar a bandeira da paz, que interesse à classe trabalhadora e aos camponeses d) reposiciona a geopolítica do continente.
Novos posicionamentos
Entre os países do continente, a Colômbia cumpriu, em décadas recentes, o papel de cabeça de ponte do governo dos Estados Unidos na ofensiva contra a insurgência das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e Exército de Libertação Nacional (ELN). Sobretudo, cumpriu o papel de assediar a Venezuela bolivariana de forma permanente ao longo de todo o período de governos Chávez e Maduro.
Já de início, o governo Petro retoma as relações com o governo Maduro, o que é positivo para todo o continente. Seja pela diversidade e riqueza de ambos os países, retomando um bloco regional, pelas proximidades culturais, seja pela Venezuela poder retomar, por exemplo, a empresa venezuelana Monómeros, de fertilizantes, que havia sido apropriada em território colombiano, após três anos sob a tutela do líder opositor Juan Guaidó. O atual combate conjunto dos dois países ao paramilitarismo é também um apontamento importante.
A Colômbia, em mais de quatro décadas de neoliberalismo, não havia tido a experiência de um governo de esquerda no marco da democracia representativa. As poucas tentativas de abertura política esbarraram, nos anos 80, em perseguições políticas e verdadeiro massacre contra políticos da União Patriótica (UP), o que forçou novamente o fortalecimento para a esquerda da via político-militar.
Entre 2002 e 2010, sob a presidência de Álvaro Uribe, a Colômbia foi governada pelo que se apelidou de uribismo, política absolutamente alinhada com Washington -, que defendeu os interesses do narcotráfico, do paramilitarismo alinhado ao Estado colombiano, do latifúndio e das corporações transnacionais. Colocou as organizações político-militares como inimigas centrais e com definição de terrorismo, o que alcançou toda a sociedade civil sob a forma de grande repressão. Nesse sentido, ao longo de décadas, e até hoje, seguem sucedendo assassinatos, perseguições contra ativistas, sindicalistas, camponeses e militantes políticos.
Recordemos também do “Plano Colômbia”, de 1999, sob pretexto de combate à insurgência, no qual o governo dos EUA investiu 1 bilhão de dólares em 2000, triplicando seu orçamento e representando 80% da assistência militar a toda América Latina (1). Fazendo, com isso, da Colômbia o papel no continente para os EUA comparável a Israel no Oriente Médio. Durante um longo eixo de tempo, os EUA conseguiram ainda submeter governos localizados na faixa do Oceano Pacífico (Chile, Peru e Colômbia), submetendo comercialmente a Tratados de Livre Comércio (TLCs).
Nenhuma mudança na composição e na hegemonia no sistema político se dá sem grande luta social. Com ênfase em 2019, os protestos massivos nas ruas demarcam um fortalecimento das lutas de massa urbanas no país. Pouco antes, a luta político-militar envereda pelos acordos de paz, com grandes dificuldades, mas criando uma bandeira importante para as forças populares. Nessa década surgem novos movimentos e organizações populares. Antes disso, é fato que, desde 2011, o país já via a movimentação do movimento estudantil e também do movimento indígena e camponês (2).
Marcas de uma guerra de classes
Na Colômbia, a paz e o cumprimento dos acordos, desde 2016, interessam à classe trabalhadora e colocaram essa bandeira central nas mãos da esquerda nesse período de mobilizações. Uma vez que o conflito de classes vitimou 180 mil civis desde 1958 até 2016.
Na Colômbia, foram quase 9 mil assassinatos como obra de paramilitares, entre 1999 e 2005. Além de grande número de população deslocada e expulsa de seus territórios. O impacto foi grande em um conflito que atacou principalmente a população civil, uma vez que eram gerados também os chamados “falsos positivos” pelos paramilitares, eliminando civis para que a contabilidade oficial anunciasse a baixa de guerrilheiros. Entre 1958 e 2012, foram 220 mil mortes, dos quais somente 20% em combate, o que reforça o massacre contra a população. Um dado atual é o de que 45% do território colombiano está coberto por minas, problema a ser enfrentado pelo atual governo. Só em 2021, 34 ativistas sociais foram assassinados, mantendo que a resistência e confrontos continuam, mesmo que a direita e o uribismo tenham deixado o poder.
Bandeiras populares
A Colômbia é um dos países com maior concentração de terras no continente – cenário que se arrastou por décadas, como num texto de Gabriel García Márquez, reforçando a forte demanda por terra no país.
Recorrendo à população mobilizada e colocando os debates centrais, mesmo diante de um congresso desfavorável, o governo Petro/Francia Márquez conseguiu aprovação do Plano Nacional de Desenvolvimento, no montante de R$ 1,2 trilhão, e também 2,9 milhões de hectares destinados para reforma agrária – tema fundamental para o país, ainda é insuficiente, mas significativo.
Em um país no qual, assim como o Brasil, a indústria manufatureira tem pouca participação na economia (12,12%, de acordo com a Cepal) e o desemprego está acima de 12 milhões de pessoas, as medidas são urgentes. O governo reagiu de forma imediata e contundente contra a sinalização de golpista por parte de setores militares da reserva.
Rearticulando a "Pátria Grande", envolvendo os trabalhadores nos desafios do governo e punindo os setores militares responsáveis pelo terror contra a população, o atual governo colombiano, em seu início, parece enveredar pelo caminho possível para o êxito de um governo de esquerda.
De alguma forma, a sabedoria revolucionária de Hugo Chávez está presente nas sendas agora abertas por Petro e Francia. Como bem recorda a apresentação ao livro Colômbia – Movimentos pela Paz, “o presidente Chávez clamou pela negociação e para que o governo colombiano reconhecesse o caráter de força beligerante às FARC, antes que simplesmente considerá-la uma narcoguerrilha, conceito que eternizaria a política antidrogas dos republicanos nos Estados Unidos e, responsável última, pela manutenção do terrorismo de Estado na Colômbia”.
REFERÊNCIAS:
1) Capítulo "Guerra e paz na Colômbia em perspectiva histórica", no livro Uma história da onda progressista sul-americana, de Luis Barbosa dos Santos. Editora Elefante, 2016.
2) O processo de construção dos acordos de paz de 2016 está bem descrito no livro “Colômbia – Movimento pela Paz, de Matheus Lobo Pismel e Rodrigo Simões Chagas”, editora Insular, 2014.
Artigos:
Vídeo:
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Texto publicado em: https://www.brasildefatopr.com.br/2023/05/17/colombia-e-o-caminho-correto-tracado-por-gustavo-petro-e-francia-marquez.
Pedro Carrano é militante da Consulta Popular, do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD) e da União de Moradores em Curitiba-PR.
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