Ingrid Macedo
Nesta segunda feira (14), foi iniciado o quarto ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU) do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em Genebra na Suíça, com participação de 119 países. A RPU é um mecanismo de avaliação da situação dos direitos humanos nos 193 Estados membros da ONU e foi estabelecida em 2006, com a criação do Conselho de Direitos Humanos (órgão intergovernamental responsável por, entre outras coisas: evitar e resolver abusos e violações dos direitos humanos, revisando regularmente a situação dos países nos aspectos referentes ao tema). O Conselho tem o mandato para organizar e guiar os Estados, que submetem relatórios a cada ciclo da RPU. São submetidos também relatórios de organizações e grupos da sociedade civil e da própria ONU, e, a partir da construção de um diálogo colaborativo, os demais países elaboram recomendações que podem ser aceitas ou rejeitadas, mas que servem como um compromisso político internacional e orientam políticas internas.
Em cada nova etapa, a RPU avalia a implementação de recomendações formuladas em revisões passadas e, anteriormente, o Brasil foi avaliado nos anos de 2008, 2012 e 2017.
Desde então, relatórios apresentados pelo Observatório Parlamentar da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (órgão nacional que acompanha a implementação das recomendações feitas pelos Estados-membros da ONU) mostram que o Brasil não está cumprindo as propostas em relação à melhoria da situação dos direitos humanos no país. O deputado Helder Salomão (PT-ES), representante do Observatório Parlamentar na RPU, declarou que de 246 recomendações, 136 não foram cumpridas e em 35 recomendações houve, ainda por cima, um retrocesso. A Agência Câmara de Notícias publicou o esquema reproduzido ao lado para apresentar a atitude do governo brasileiro em relação às recomendações do Conselho.
Neste ciclo, países como México, Peru, Espanha, Suíça, Reino Unido, EUA, Canadá, Dinamarca e Alemanha destacaram a necessidade de demarcar as terras indígenas, fortalecer órgãos de proteção como a Fundação Nacional do Índio (Funai), rejeitar a tese do marco temporal e projetos de lei que estão no Congresso com propostas de garimpo e mineração em terras indígenas.
Em sua tentativa de defesa, os representantes da comitiva brasileira, liderada pela atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Cristiane Britto, listaram os insuficientes trabalhos assistenciais prestados às populações tradicionais, sobretudo durante a pandemia da Covid-19, mencionando o papel da Funai na proteção dos povos originários. Os argumentos não foram suficientes para convencer as comitivas dos demais países.
Algumas lideranças indígenas de diferentes estados brasileiros compareceram ao evento, são estes Eloy Terena (advogado e coordenador jurídico da Apib), a Cacica Cullung Vei-Tchá Teié (retomada Xokleng Konglui em São Francisco de Paula – RS), o cacique Rodrigo Mãdy Pataxó (T.I. Comexatibá), Maurício Ye'kwana (T.I. Yanomami) e Maial Paiakan (T.I. Kayapó). Estão presentes também os aliados e representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Roberto Liebgott e Paulo Lugon.
Em paralelo à RPU, foi realizada uma reunião com o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD). Na ocasião, o cacique Rodrigo Mãdy Pataxó fez um importante pronunciamento sobre a violência que seu povo e os demais povos do Brasil sofrem por conta do racismo anti-indígena e a não demarcação das terras tradicionalmente ocupadas. O cacique relatou a situação atual do povo Pataxó que, lutando pela demarcação de seus territórios no extremo-sul baiano (T.I. Barra Velha - reestudo e T.I. Comexatibá), intensificou o processo de retomada e autodemarcação de terras previamente griladas, atualmente sob propriedade de não-indígenas, indevidamente ocupadas, degradadas e utilizadas na monocultura e na pecuária. Seu relato incluiu as práticas de violências por parte de fazendeiros e agentes da Polícia Militar, que, em conluio, perseguem, ameaçam e assassinam nativos. Em seu discurso, Mãdy narrou o assassinato do adolescente Gustavo Silva da Conceição que, com apenas 14 anos de idade, foi morto por disparo de arma de fogo durante um violento ataque contra uma área de retomada na T.I. Comexatibá, em 4 de setembro deste ano. Pouco depois, no início de outubro, 3 policiais militares foram presos por suspeita de envolvimento na morte do adolescente Pataxó.
O objetivo da participação das lideranças indígenas na reunião em questão foi o de buscar a colaboração e participação de organismos internacionais na demanda e fiscalização de medidas do governo brasileiro que assegurem o funcionamento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), atualmente fragilizado. Ao final da reunião foi entregue à Verene Shepherd, presidente do CERD, o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021 (publicação anual do Cimi).
Em seguida, na terça-feira (15), o cacique Mãdy Pataxó e Roberto Liebgott (conselheiro do Cimi Sul) participaram de uma reunião no Parlamento Nacional da Suíça com o deputado Fabian Molina, buscando cooperação entre os países na atuação pela proteção do meio ambiente e dos direitos humanos. Neste sentido, a delegação brasileira fez recomendações ao Parlamento como, por exemplo, a rejeição de apoio e financiamento à projetos de mineração, do agronegócio (monocultor e exportador), do plantio de plantas exóticas (como o eucalipto) e a interrupção de investimentos em agrotóxicos que contaminam as águas e causam danos irreversíveis à saúde. Foi solicitada também a recusa de produtos brasileiros oriundos do uso indevido de terras indígenas e de áreas que são alvo de degradação e desmatamento. Não apenas, a delegação solicitou o posicionamento do Parlamento Suíço contra a tese do Marco Temporal, defendendo o direito originário ao território. De fato, durante a RPU, o governo suíço se manifestou a favor da questão indígena e recomendou ao Brasil a adoção de medidas para o cumprimento da Constituição Federal acerca dos direitos originários.
“A terra é nossa carne, os rios as nossas veias, onde o sangue corre e as matas são os espíritos. Se destruírem a terra, matam os filhos dela.” foram as palavras de Mãdy Pataxó aos presentes e, na ocasião, o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil foi apresentado e entregue aos parlamentares.
Já na tarde de quarta-feira (16), teve início a reunião para tratar da RPU para a Eliminação da Discriminação Racial feita pelo CERD, na qual compareceram os representantes do Cimi e os caciques Mãdy Pataxó e Cullung Teié Xokleng.
No evento, os representantes oficiais do governo brasileiro comentaram as críticas e denúncias que vem sendo expostas nos últimos anos ao CERD e apresentaram um relatório fundamentado em pretensos grandes feitos na assistência, proteção e amparo aos indígenas, quilombolas e imigrantes.
A comitiva do governo federal defende que a atual gestão trabalha de forma conjunta para possibilitar um avanço importante das pautas de direitos humanos no Brasil. Na declaração da ministra Cristiane Britto: “Demonstramos que, com uma atuação integrada, harmoniosa, integralmente transversal e menos preocupada com o patrulhamento ideológico na condução de políticas públicas, é possível avançar e, ao mesmo tempo, preservar valores”.
Em suma, através de respostas evasivas, falas problemáticas e dados imprecisos (e até completamente destoantes de relatórios apresentados por outras organizações e grupos da sociedade civil) a comitiva brasileira defendeu uma imagem que não corresponde à efetiva ação do governo Bolsonaro e seus ataques diretos e indiretos aos direitos humanos no país. Não à toa, nos últimos anos, o governo Bolsonaro elegeu as ONGs, ativistas e jornalistas como inimigos da nação, responsáveis, segundo o próprio chefe de Estado, por “difamar” a imagem do país no exterior. De acordo com o que afirmam Camila Asano e Eloy Terena, ainda que o descumprimento das recomendações não implique qualquer forma de sanção, o processo da RPU oferece indicadores que podem orientar gestores públicos, legisladores e representantes do judiciário em uma atuação que calibre suas relações diplomáticas para que o Brasil volte, entre outras coisas, a ser um ator relevante internacionalmente. Os indicadores e caminhos apontados pelas outras nações durante a RPU podem orientar também a sociedade civil no papel de denunciar violações e cobrar por mudanças efetivas, fortalecendo a luta dos povos tradicionais e outras minorias sociais.
Acesse o Relatório “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021” aqui.
Reprodução do Twitter. Disponível em: https://twitter.com/Diogotapuio/status/1592613812846219264s=20&t=_R9nruY2TMR44HCQITl6A.
Ingrid Macedo, de nome indígena Juacema, pertence ao povo Pataxó, é artesã, comunicadora popular e integra o coletivo Brasil Vermelho.
REFERÊNCIAS:
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Observatório Parlamentar avalia que Brasil não está cumprindo recomendações da ONU sobre direitos humanos: Conforme deputado, das 246 recomendações, 136 não foram cumpridas e em 35 houve retrocesso. Brasil, 14 nov. 2022. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/919547-observatorio-parlamentar-avalia-que-brasil-nao-esta-cumprindo-recomendacoes-da-onu-sobre-direitos-humanos/. Acesso em: 15 nov. 2022.
A FRONTE – JORNALISMO DAS GENTES; LIEBGOTT, Roberto. ONU-CERD e a resposta evasiva do governo brasileiro. Brasil, 16 nov. 2022. Disponível em: https://afrontejornalismo.com.br/onu-cerd-e-a-resposta-evasiva-do-governo-brasileiro/. Acesso em: 16 nov. 2022.
O GLOBO; ASANO, Camila; TERENA, Luiz Eloy. Artigo: Brasil fica na berlinda internacional por políticas anti-indígenas: Predominância da questão indígena e proteção a ativistas entre as recomendações do quarto ciclo da Revisão Periódica do país na ONU é sinalização contundente para próximo governo. Brasil, 15 nov. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/coluna/2022/11/artigo-brasil-fica-na-berlinda-internacional-por-politicas-anti-indigenas.ghtml. Acesso em: 15 nov. 2022.
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