No Extremo Sul da Bahia, a degradação socioambiental gerada pela monocultura do eucalipto ameaça o modo de vida de comunidades quilombolas e indígenas.
Ingrid Macedo
Neste mês, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra a União, o estado da Bahia, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (INEMA) e as empresas de celulose e papel Suzano S.A e Veracel Celulose S.A, com o objetivo de obter tutela judicial que assegure a devida proteção aos territórios dos povos tradicionais do Extremo Sul da Bahia – mais precisamente as comunidades quilombolas de Cândido Mariano, Helvécia, Volta Miúda, Mutum, Mota, Naiá, Vila Juazeiro e Rio do Sul, além das Terras Indígenas Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal, pertencentes ao povo Pataxó.
Impactados há décadas pelo monocultivo de eucalipto na região, as comunidades estão ameaçadas pela degradação socioambiental que desestimula o modo de ser, viver e existir de suas populações. Segundo o MPF, a expansão dos empreendimentos das duas empresas acontece sob a "inegável e injustificável omissão e/ou conivência do Poder Público", definidas na ação como fator elementar no contexto degradante vivido na região.
Em audiência pública conjunta, em março de 2022, representantes das comunidades quilombolas declararam que a expansão desses cultivos causa alterações no estilo de vida tradicional e apontaram a pulverização excessiva de agrotóxicos como fator prejudicial à saúde da população e à agricultura familiar. Assim, a ampliação da vulnerabilidade pelo empobrecimento da população quilombola obriga os moradores da região a se mudar para a cidade para tentar garantir a sobrevivência: de fato, as comunidades quilombolas Naiá e Mutum desapareceram como consequência do avanço da monocultura, que causou a escassez da água e improdutividade do solo.
Em relação aos territórios do povo Pataxó, o MPF cita o relato da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e dos nativos em relação ao Rio Caraíva que, devido ao plantio de eucalipto, sofreu uma diminuição da vazão das águas, da oferta de pescado, mudança na tonalidade da água e deixou de ser potável. Os indígenas denunciam que as áreas de nascente e as microbacias de suas terras estão cobertas predominantemente por plantações de eucalipto e que a supressão da mata ciliar ao longo do curso dos rios diminui a qualidade da água e intensifica o assoreamento. Os rios são indispensáveis ao modo de vida tradicional Pataxó, seja para pesca, agricultura, prestação de serviços turísticos, transporte, lazer e coleta de alimentos no mangue. Portanto, a poluição das águas nos territórios originários representa também uma grande ameaça à reprodução física e cultural do povo indígena. Além disso, com a implantação de extensas áreas de monocultivo do eucalipto e o desmatamento da floresta nativa, fez-se notória a diminuição da biodiversidade, impactando diretamente a subsistência das famílias: as caças tradicionais tornaram-se escassas, sementes e frutos deixaram de ser encontrados, pois já não existem suas matrizes. A Procuradoria da República na Bahia enfatiza que as atividades de eucaliptocultura têm avançado no extremo sul de forma irregular, com o aval do INEMA, sem qualquer observância à necessária consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais – direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), principal tratado em matéria de direitos dos povos tradicionais e socioambientais, ratificada pelo Brasil e internalizada no ordenamento jurídico interno.
Outras irregularidades apontadas são a inexistência de medidas para proteção e conservação de sítios arqueológicos identificados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nos territórios quilombolas; desrespeito dos recuos mínimos das plantações de eucalipto de rios e nascentes, estradas, perímetros urbanos e dos próprios territórios tradicionais; possível desrespeito às normas legais previstas para a ocupação de áreas por empresas estrangeiras: de acordo com as investigações divulgadas no trabalho acadêmico denominado “A territorialização do monopólio no setor celulístico-papeleiro: a atuação da Veracel Celulose no Extremo Sul da Bahia”, a Veracel Celulose (cujos acionistas são a empresa brasileira Suzano e a sueco-finlandesa Stora Enso) possui 293 propriedades na Bahia, totalizando mais de 200 mil hectares de terra. Segundo a legislação vigente, ela não poderia ocupar mais de 25% da área de um município, o que, segundo o estudo, não ocorre na cidade de Eunápolis: diversas propriedades foram compradas pela Veracel, segundo consta nas matrículas, enquanto as terras ainda eram devolutas do Estado da Bahia e todas elas foram transmitidas em algum momento para domínio particular, em todos os casos para pessoas físicas, o que indica possível uso de “laranjas” para regularização da situação jurídica das terras apropriadas pela empresa. Há ainda duas propriedades que foram transmitidas diretamente pelo estado à Veracel.
O procurador Ramiro Rockenbach Almeida, que assina a ação civil pública, afirma que é “absolutamente necessário que o Poder Público atue e cumpra o seu dever de identificar as terras públicas para que, em hipótese alguma, empreendedores privados se utilizem indefinidamente daquilo que pertence à sociedade como um todo e, em especial a povos originários e tradicionais.”
Diante de tantos elementos que indicam que estes empreendimentos se desenvolvem a partir de diversas ilegalidades, em detrimento dos direitos das comunidades tradicionais, o MPF elenca uma série de pedidos em caráter de urgência à Justiça, por exemplo:
Que a União efetue uma avaliação sobre a regularidade de todos os imóveis rurais registrados em nome da Suzano S.A e Veracel Celulose S.A, ou por elas utilizadas para atividades de eucaliptocultura no Extremo Sul da Bahia;
Que a União adote, concomitantemente, medidas para assegurar a devida destinação dos territórios respectivos às comunidades tradicionais, inclusive fomentando políticas públicas socioambientais, compensatórias e reparatórias;
Que a União e o estado da Bahia suspendam qualquer tipo de financiamento ou incentivo (envolvendo recursos federais e estaduais) relacionados às atividades de eucaliptocultura das duas empresas;
Que o INEMA suspenda toda e qualquer autorização ambiental e/ou respectivos processos de renovação das empresas até que sejam realizados os devidos processos de consulta prévia, livre e informada;
Que o INEMA solicite a legal e necessária anuência ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN no que se refere às áreas que envolvem os sítios arqueológicos;
Que as empresas paralisem todas as atividades, executadas diretamente ou por empresas contratadas (estradas, plantios, cortes e colheita da madeira, aplicação de veneno e insumos etc) nos territórios tradicionais em exame;
A decretação de invalidade de todas as matrículas de imóveis rurais registradas em nome das empresas (ou por elas utilizadas), que estejam situadas e/ou impactem territórios tradicionais do Extremo Sul da Bahia e em relação às quais, após a investigação da cadeia dominial, incluindo análise do percentual permitido à propriedade de estrangeiros, verifiquem-se irregularidades.
Leia o documento na íntegra: ACP 1004853-19.2023.4.01.3313
Ingrid Macedo, de nome indígena Juacema, pertence ao povo Pataxó, é artesã, comunicadora popular e integra o coletivo Brasil Vermelho.
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