Camila Mudrek
“Em um país soviético, uma mulher escrava tornou-se criadora de uma nova vida.”
Palavra de ordem nas ruas - 1917
1. NACIONAL
Sabemos que o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo – em sua etapa fictícia e parasitária – impõe ritmos ainda mais perversos na reprodução de estruturas de superexploração e dominação, em especial nas periferias do mundo. No Brasil, os impactos da agenda ultra-neoliberal recheada de reformas estruturais, cortes dos gastos públicos e políticas de austeridade fiscal, somadas a medidas autoritárias de um aparato estatal racista e patriarcal, fazem com que a corrida orçamentária enxugue ainda mais o financiamento público para mulheres, desconsiderando que a geração ou transferência de renda e a profissionalização deveriam conter um viés prioritário no recorte de gênero, devido a histórica marginalização da participação feminina no âmbito da vida econômica de forma digna (seja no mercado de trabalho, seja no direito a titulação de terras, seja na equidade salarial), que garantiria uma base sólida de reprodução da vida para todas.
Este cenário aliado ao projeto neofascista, que busca consolidar sua hegemonia para impor uma mudança de regime, soma forças no estrangulamento político-social das mulheres ao invés de garantir suas condições mínimas de sobrevivência material e política. Desta forma, a política de governo atual reduz a condição humana e social das mulheres à da maternidade compulsória: a mulher hoje, diante dos olhos do projeto político em curso e de seus/suas representantes, só é reconhecida enquanto “mãe” – mantenedora da hereditariedade burguesa privada, repositora da força social, realizando trabalhos informais e/ou voltados para as tarefas do cuidado. Neste flanco, o que é desconsiderado é a manutenção, fortalecimento e ampliação do acesso à educação social e incentivo a participação política, investimentos em infraestrutura para saúde integral especializada, instituições públicas de assistência social e educacional para crianças, transparência de dados institucionais e o fortalecimento de programas de combate à violência.
No último período (2018-2021) vimos este cenário se agravar de forma abrupta e trágica, um dos exemplos mais perversos foi a redução drástica do orçamento de combate à violência contra mulher – a pasta teve uma redução prevista de R$35 milhões anuais para R$195 mil¹ –, o que impôs o fim da implementação do Programa “Mulher Viver Sem Violência” que previa a instalação de uma “Casa da Mulher Brasileira” - para atendimento psicossocial de vítimas de violência – em todas as capitais do país. Em 2019 o programa ficou sem receber nenhum centavo. Já em junho de 2020 o governo federal anunciou investimento de R$61,2 milhões para o mesmo, sem apresentar, no entanto, os desdobramentos operacionais deste valor. Isso tudo em uma conjuntura em que o feminicídio contabiliza uma morte a cada nove horas, sendo a Bahia o terceiro estado com maior índice no Brasil. O esvaziamento de programas de redistribuição, transferência e garantia de renda como o Bolsa Família, onde mais de 90% dos inscritos eram mulheres, em sua maioria negras, e o formato cada vez mais restrito do Auxílio Emergencial (valor mais baixo e tempo mais curto) também são fatores que corroboraram para o crescimento dos casos de violência doméstica, visto que, ao se agravar a vulnerabilidade econômica, agrava-se também a dependência financeira das vítimas em relação a seus agressores.
Outro fato que nos ajuda a ilustrar o cenário de ocultamento da verdade em prol da política neofascista e contra a vida das mulheres da classe trabalhadora é o recente anúncio da Ministra Alves, em Janeiro de 2021, quando alegou ter gasto cerca de 98% do orçamento disponível para seu Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, quando na verdade o montante declarado no Portal da Transparência correspondia a apenas 53% do uso dos recursos – sendo 48% desse total destinado a programas de proteção de idosos².
A atual Ministra, defensora do Estatuto do Nascituro e de aberrações como o “Bolsa Estupro” (PL 5435/2020), muitas vezes foi analisada como mero “peão” no xadrez político, como parte meramente discursiva de um núcleo ideológico conservador, funcionando como uma “cortina de fumaça” no governo Bolsonaro. Nos parece central, porém, destacar que a atuação da Ministra cumpre um papel fundamental na correlação de forças da luta de classes. Vejamos alguns dados:
Segundo estudos do IREE³ e do DIEESE⁴ apenas durante a crise sanitária mais de 8 milhões de mulheres deixaram o mercado formal de trabalho, diminuindo os índices de ocupação feminina em idade produtiva. Grande parcela delas alega que isso se deu devido à necessidade de cuidar de afazeres domésticos, filhos ou parentes. Esse cenário que acresce a crise sanitária à falta de políticas públicas efetivas de trabalho e renda levou à menor participação das mulheres no mercado de trabalho dos últimos 30 anos, sendo elas também a maioria dos que sofreram com a destruição das vagas líquidas (dois terços do total), por ocuparem cargos majoritariamente em serviços afetados pelas restrições – como alojamento, alimentação, saúde, limpeza, educação e atendimento ao público.
Avaliando o cenário atual de somatória de crises (econômica, política, social, ambiental e sanitária) se nos debruçarmos sob os ataques infligidos pelo grande capital a territórios rurais, camponeses, originários e tradicionais através de instalação de complexos do agro-hidro-minério-negócio será possível percebermos também as marcas de gênero deixadas por essa exploração no que tange a contradição capital x natureza. A extração de valor advinda da exploração de bens comuns (água, terra e minério) em países periféricos e dependentes atinge também, de forma mais violenta as mulheres do campo, ribeirinhas, indígenas, quilombolas e geraizeiras: são elas as responsáveis por caminhar horas para buscar água potável para o trabalho doméstico em nascentes e fontes cada vez mais distantes, estando também a frente da manutenção da reprodução da vida no que tange a estratégias de cultivo e alimentação saudável para a família. Além disso, o setor camponês também foi um dos mais afetados pela Reforma da Previdência que pretendia, por exemplo, igualar a idade mínima para aposentaria das mulheres camponesas a de homens urbanos; de toda forma, o trecho aprovado ainda impôs um retrocesso de dez anos de reparação de desigualdades de jornada e condições de trabalho.
A intenção deste novo movimento do capital fictício, chamado de “financeirizado”, é, portanto, de extrair mais tempo e intensificar as formas de trabalho – infligindo cada vez mais sobre as mulheres a responsabilização em relação ao trabalho reprodutivo não remunerado, mas também deixando recair sobre elas as marcas patriarcais de trabalhos mal remunerados, com intensas jornadas e pouca segurança. Neste sentido, a casa se torna um local de experimento da precarização que garante um novo padrão de acumulação condizente a uma dinâmica rápida, intensa, sangrenta e parasitária, levando muitas mulheres a uma realidade da exaustão e adoecimento, atualizando o cenário narrado por Engels sobre a Inglaterra do séc. XIX. O regime neofascista, aliado ao grande capital internacional, cumpre seu dever de aprofundar ao máximo essa exploração, mas nos parece importante frisar, porém, que ainda que seja possível uma mudança de regime (pela via eleitoral, por exemplo), a alteração do viés político-institucional não seria suficiente para alterar tal cenário de forma estrutural – proporcionando o fim da exploração do trabalho (produtivo e reprodutivo) das mulheres da classe trabalhadora –, justamente porque esta exploração é central no modo de produção capitalista.
Diante do exposto, é Lênin quem nos ajuda a perceber a necessidade política de qualificarmos nossas análises a respeito da situação das mulheres da classe trabalhadora, quando em 1913 escreve:
“São essas mulheres que os capitalistas mais desejam empregar como empregadas: mulheres que são preparadas para salários absurdamente baixos para 'ganhar um pouco mais' para si - como antigos proprietários de escravos e os senhores feudais medievais (…) Milhões mais milhões de mulheres do povo pobre vivem (ou melhor, sobrevivem) como 'escravas domésticas', lutando para alimentar e vestir suas famílias com centavo, a custo de esforços diários desesperados e 'economizando' em tudo o que podem – exceto seu próprio trabalho”.
O que os dados da atual conjuntura evidenciam, portanto, é que – na conjunção de fatores econômicos e jurídico-políticos – o papel da Ministra Damares Alves não é secundário na composição do governo neofascista, mas cumpre centralidade política na manutenção da maior fatia da classe trabalhadora (51,3% são mulheres) enquanto responsáveis pelas funções vitais para a reposição diária da força de trabalho desonerando tanto o Estado, quanto a burguesia. Ou seja, Alves está à frente de um dos Ministérios mais estratégicos para o aprofundamento da superexploração do trabalho e manutenção das desigualdades sociais, visto que manter as mulheres recatadas e do lar, e/ou realizando o trabalho precarizado, marginalizado e reprodutivo de forma não remunerada, permite, a níveis mundiais, um acúmulo de US$10,8 trilhões anuais aos cofres públicos e privados, segundo a OXFAM; pra se ter ideia, o valor representa três vezes mais que o faturamento de todo setor de tecnologia do mundo. Em uma fase histórica de crise profunda e rastejante, isso há de significar muito.
2. BAHIA
O nordeste historicamente é entendido no cenário econômico nacional enquanto um “problema a ser resolvido”, cuja solução é disputada por diferentes setores e/ou frações burguesas, já as descrições causais têm, para eles, alguns denominadores comuns: o clima semiárido seria um empecilho para a produção agrícola, as plantas industriais não seriam sua vocação (exceto pelo período de ouro da SUDENE) e a seca é sempre apresentada como a grande vilã, cumprindo o papel de ocultar a responsabilidade da burguesia baiana na perpetuação da herança colonial de oligarquias latifundiárias, cercando tanto as terras quanto as águas. Neste cenário, o desenvolvimento das forças produtivas é associado aos interesses externos, mas a conservação de valores responde a uma burguesia atávica; decorre disso que a Bahia convive ainda com estruturas neocoloniais em sua organização político-econômica e social: a questão racial nunca foi resolvida, haja vista a atuação estadual da polícia militar, a denotação racista-patriarcal continua impressa também nos índices de violência contra mulher e os grandes setores econômicos potencializados no último período são os que mantêm foco na extração para exportação (celulose, algodão, soja e minerais) onde até a própria logística de circulação de mercadorias (portos, estaleiros, ferrovias e rodovias) recebe investimentos com vistas a resolver as demandas externas, funcionando como uma grande plataforma de extração de valor.
Apesar de termos dificuldade em identificar e monitorar o comportamento da burguesia na Bahia, expondo inclusive os diferentes interesses entre as diferentes frações, soma-se ao exposto que a dificuldade em gerar um fluxo de renda doméstico abre espaço para que o capital financeiro possa se materializar em algo seguro, potencializando de forma errática setores como a construção civil de grandes mansões – gerando empregos oscilantes e inseguros devido à falta de planejamento, garantidos apenas durante o seu curto período de “boom” –, e na instalação de projetos minerários e eólicos que também aprofundam os conflitos agrários no estado. Ou seja, nos últimos cem anos não houve alterações estruturais por aqui, foi mantida, no viés econômico, uma “vocação” primária exportadora ligada à produção ou extração de commodities voltadas para o mercado externo, dentro de uma estrutural social racista e patriarcal que também reforça a superexploração do trabalho e a violência, especialmente de mulheres e da população negra.
A descrição do atual cenário econômico – dependente e associado – correlacionado a manutenção do poder político de burguesias locais, que têm representações na composição atual da frente neodesenvolvimentista, nos ajuda a compreender a alta concentração de renda e de terras, a consequente desigualdade social e os problemas econômicos e sociais da carga histórica de nosso estado. Como dissemos, nos falta aprofundar a análise dessa burguesia e as diferenças frações, denominando também sua atuação no bloco hegemônico no poder estatal de hoje; todavia, é possível afirmar que a classe trabalhadora ainda sofre com a carestia, por exemplo, devido ao armazenamento de grãos abastecer a demanda externa e a desigualdade de investimentos e incentivos públicos manter-se alta entre a agricultura camponesa e a burguesia agrária.
Este cenário de aprofundamento da análise da luta classes, para os propósitos deste texto, nos leva a perguntar: Quem são as mulheres da classe trabalhadora na Bahia? Quais contradições de classe atravessam de forma específica seu cotidiano e como são elas cortadas pelas marcas raciais e patriarcais em nosso estado?
A começar pelos começos, as marcas de uma sociedade racializada e com heranças escravocratas acompanham de forma profunda a realidade das mulheres. Se tomarmos como exemplo os índices de vulnerabilidade (violência, acesso a educação e desemprego) é possível visualizarmos gravidade da questão racial, imbricada a questão de classe-gênero, tanto a níveis nacionais quanto estaduais. Optamos neste texto em aprofundar o debate de raça apenas no cenário estadual para que possamos evidenciar de forma mais concreta e específica a problemática baiana, sob a qual nos cabe atuar.
A respeito da violência, os índices de feminicídio (2017-2020) na Bahia, segundo a Secretaria de Segurança Pública, marcaram 364 vítimas durante o período, sendo 113 apenas em 2020, representando um crescimento de 13,4% no ano da pandemia. Em 79,1% dos casos a autoria do assassinato foi de um companheiro ou ex-companheiro da vítima, sendo 76,4% das ocorrências em seu próprio domicílio. O perfil majoritário dessas mulheres era de faixa etária dos 30 aos 49 anos, com cônjuge e negra. Ou seja, mulheres negras de idade adulta, no auge de sua maturidade produtiva, estão sendo assassinadas em suas casas por homens de sua confiança – este é o primeiro e gravíssimo desafio que a atual conjuntura nos coloca.
Quanto à educação, definida a série histórica comparativa de 2012 a 2020, ocorreu uma forte ampliação da participação de mulheres com mais de 16 anos de estudos completos, dobrando os índices tanto em áreas urbanas quanto rurais; a faixa etária dos 14-29 anos ainda é a que concentra o maior grau de instrução, apesar da faixa 40-49 anos ter aumentado sua participação escolar em 2020. De toda forma, o estado ainda registra 871 mil mulheres com menos de um ano de estudo, a maior parcela em área rural. Acrescendo a estes índices a categoria de raça, a maioria das mulheres autodeclaradas negras tinha apenas de 12 a 15 anos de estudo, ou seja, no máximo ensino médio completo. Enquanto entre as mulheres brancas 16,25% tinham 16 ou mais anos de estudo, para as mulheres negras esse índice cai para 9,2%. Importante ressaltar também que, apesar das mulheres negras serem participantes da ampliação dos níveis educacionais elas ainda são as que sofrem com a discriminação setorial-regional-ocupacional, ocupando a base da pirâmide produtiva. O que nos leva ao próximo tópico.
Analisar as contradições capital x trabalho na realidade das mulheres nos impõe sempre um duplo movimento: considerar tanto os índices do trabalho produtivo (formal e informal), quanto evidenciar a força de trabalho empenhada por elas para o desenvolvimento do trabalho reprodutivo (secundarizado e invisibilizado). Todas as estatísticas a seguir carregam as marcas de nossa formação social: são as mulheres negras que enfrentam de forma mais profunda o desemprego, o trabalho precarizado, a desproteção para garantia do sustento da família, a brutalidade do mercado informal; são desigualdades estruturais que refletem na renda, no trabalho, no patrimônio, na condição cultural, de atendimento digno na saúde e no acesso a educação.
Para termos uma ideia deste quadro, somente na Bahia, em 2020, segundo a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI), aproximadamente um milhão de mulheres (947 mil) estava à frente de um domicílio sem a presença de cônjuge e com pelo menos um filho(a). Na condição de responsável, acumularam atividades de cuidado e trabalho. A monoparentalidade feminina é majoritária em regiões urbanas (752 mil) - em Salvador, no mesmo período, 228 mil mulheres chefiavam domicílios monoparentais. Todavia o cenário de acúmulo de jornadas de trabalho não é restrito a famílias monoparentais, haja visto que, segundo a OXFAM, no início de 2020 mulheres eram responsáveis por 75% dos trabalhos de cuidado e manutenção da vida de forma não remunerada, todos os dias elas trabalham até três vezes mais que os homens (OIT, 2018); deve somar-se a isso o fato de que durante a pandemia 50% das mulheres do mundo passaram a cuidar de mais alguém (filhos, cônjuge, idosos, familiares).
Ainda em relação ao quadro econômico de nosso estado, no último trimestre de 2020 os indicadores demonstraram que, com o fim do auxílio emergencial, houve uma queda em setores varejistas e de comércio, mas o setor de serviços apresentou crescimento de quase 20%. Dentro deste aspecto, porém, houve uma baixa considerável em dois segmentos: por ordem de magnitude aparecem as atividades de Serviços prestadas às famílias (-22,6%), que apontaram a mais expressiva variação negativa, seguida por Serviços profissionais, administrativos e complementares (-7,2%). No total, o estado fechou o ano com a perda de 5.037 postos de trabalho, sendo que apenas o agronegócio (soja, milho, algodão e feijão) e a indústria geral (extrativa mais transformação – celulose, petróleo e biocombustível, couro e metalurgia) apresentaram alta considerável ou redução de perda, mesmo com o encerramento das atividades da Ford em Camaçari. Como apontamos anteriormente, o comércio de materiais de construção teve um pico (“boom”) de vendas no terceiro trimestre do mesmo ano, com perda relevante (4%) na sequência. O turismo no estado também apresentou queda de 26,3% se comparado com o período anterior, com maior perda líquida de postos de trabalho formais no quarto trimestre de 2020, também por ordem de magnitude, para Hotéis e similares (3.734 postos), e Restaurantes e outros estabelecimentos de serviços de alimentação e bebidas (3.225 postos).
Nos interessa desses dados apontar que, para além das marcas de precariedade, centralidade no setor de serviços e informalidade que acompanham as designações de trabalho na Bahia e que levaram 65% das famílias do estado a acessarem o Auxílio Emergencial no último ano, os setores que concentraram quedas e, consequentemente, demissões, foram justamente aqueles destinados as mulheres: domésticas, secretárias, camareiras, faxineiras, recepcionistas, garçonetes; necessário frisar também que estes cargos historicamente são majoritariamente ocupados por mulheres negras. O último boletim do CAGED sobre a Bahia que trás o recorte de gênero, de Julho de 2020, demonstra justamente que é nos setores de comércio e serviços onde estão as maiores fatias de cargos ocupados por mulheres (na agropecuária, indústria geral e na construção a participação feminina é pouco expressiva); ainda assim, no comércio daquele mês elas perderam 510 cargos, enquanto eles representaram um saldo positivo de 329 cargos.
Outro dado relevante para nossa discussão, no que se refere ao mercado de trabalho formal, é que, segundo o IBGE, apesar da queda significativa na desigualdade salarial no Brasil entre 2012 e 2018 – fruto de reivindicações históricas de luta e políticas públicas de reparação - as trabalhadoras ainda ganham, em média, 20,5% a menos que os homens no país, mantendo estruturas patriarcais de organização e valorização sob a lógica da divisão sexual do trabalho.
3. DESAFIOS
Diante do exposto, nos cabe analisar que a realidade que as trabalhadoras enfrentam na Bahia é a de perda de postos de trabalho com fins salariais, impondo um fluxo ainda maior para a informalidade e sujeição a precariedade. Soma-se a isso a sombra da volta da fome e da extrema pobreza em índices alarmantes no país, que impõe às mulheres baianas, chefas de família, o perfil de “mães guerreiras”, testadas a garantir a paz social em seus territórios e comunidades enquanto convivem com um cenário de guerra, violência e encarceramento em massa – este elemento último, representando a máquina compulsória de subordinação de seres humanos à lógica privada de Presídios que sugam dali o suprassumo da mais-valia, refinando as designações da escravidão moderna.
As mulheres negras da Bahia, trabalhadoras por imposição histórica, figuram, portanto, os atores e sujeitos principais da resistência que encontraremos em nosso trabalho de retorno às bases, diante da sofrida derrota estratégica. Se avaliamos que é nos territórios, nos bairros, nas periferias onde residem os esporos da reorganização da classe trabalhadora é central, para nós, afirmar o papel dessas mulheres nesse processo.
Vimos que a nível nacional está em curso hoje uma conjunção de fatores econômicos e jurídico-políticos que permitem a atual sociedade capitalista manter ou aprofundar relações de exploração e dominação que favoreçam a extração de mais-valia (produtiva e, por que não, reprodutiva). Nos preocupamos aqui em trazer dados que elucidem que a configuração do bloco hegemônico no poder no Brasil hoje, aliado ao grande capital internacional, não abrirá espaço para alterar o cenário de correlação de forças apenas a partir de reformas ou vitórias “dentro da ordem” – seja na conformação de um governo progressista, seja na manutenção de um governo neofascista. Será necessário para nós, feministas marxistas, pautar a luta pela transformação radical desta sociedade, aliando a responsabilização estatal (coletiva e pública) pelos trabalhos de reprodução da vida ao acesso a formação política, ao fomento de processos políticos organizativos que garantam a consciência de classe para as mulheres do povo, forjando, passo a passo, novas estruturas e relações sociais não capitalistas, não racistas e não patriarcais.
Em nossa participação histórica na luta de classes é possível resgatar táticas de organização que estejam junto ao povo, junto às mulheres do povo. Um grande exemplo é o do MCV (Movimento Custo de Vida) que, a partir de encontros de bordado nas paróquias das periferias, figurou um dos maiores movimentos populares contra a ditadura no Brasil. O MCV, na década de 70 e 80, a partir de pautas econômicas e sociais como acesso a creches, luz, água encanada, salário emergencial e denuncia da carestia, aliadas a ações comunitárias para garantir a alimentação, a saúde e a educação, organizou dezenas de milhares de mulheres e se espraiou e capilarizou o debate político dos Clubes de Mães, passando pelas das casas dessas mulheres até os sindicatos de seus maridos, em um cenário político ditatorial, também de derrota estratégica da classe trabalhadora, onde elas, ao ousarem organizar o povo, foram rechaçadas pela burguesia e pelo aparato estatal do regime militar da época, que, como sabemos, perseguia, criminalizava e assassinava lideranças.
Em nossas análises, enquanto partido, a Consulta Popular vem debatendo quais os impactos do atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, visualizamos possíveis reconfigurações das estruturas de trabalho, de enfraquecimento da capacidade organizativa dos sindicatos e a dificuldade de atuação de trabalhadores/as relegados a precariedade, quarterização, uberização, ao trabalho just in time, que blindam ainda mais o movimento de práxis da classe em si à classe para si, ou seja, de atuação organizada dentro de um projeto de sociedade. Nos cabe refletir, então, onde reside a capacidade organizativa da classe trabalhadora diante desse novo cenário, com o compromisso de não desconsiderar a importância ou rebaixar táticas de organização popular a níveis comunitários, dando a essa reflexão consequências práticas em nossas ações.
Por fim, nos importa ressaltar que não invalidamos ou subestimamos na organização e articulação política, a necessidade de um processo que seja capaz também de aglutinar as mulheres dirigentes partidárias e de movimentos populares de nosso campo em uma estratégia comum. A exemplo das mulheres comunistas e operárias que, em 1928, que convocaram a militância a “lutar contra as barreiras do futuro de nossos filhos” com a perspectiva de “atrair mulheres para a causa”, sabemos que nosso programa antilatifundiário, antiimperialista, antineoliberal, antirracista e antipatriarcal deve tratar não só de acesso a igualdade de direitos, mas aliá-lo a lutas que ofereçam uma base para a emancipação irrestrita das mulheres da classe trabalhadora.
O coração da tradição deste país são seus homens de
trigo
morrendo por dinheiro
morrendo por água por mercados por poder
sobre as proles de toda a gente
eles se sentam em suas correntes na terra seca deles antes que caia a noite
contando causos enquanto esperam seu tempo de terminar
esperando que os jovens possam ouvi-los
medos que sacudem a terra cobrem seus inexpressivos rostos cansados
muitos deles perderam a vida e as esposas parindo
muitos deles nunca viram praias
mas no que Oiá minha irmã sai pela boca
de seus filhos e filhas contra eles
vou me avolumar das páginas de seus arautos diários
saltando para fora dos almanaques
em vez de responder a busca deles pela chuva
eles vão me ler
a nuvem negra
significando algo inteiro
e diferente.
Quando os ventos da Orixá sopram
até as raízes da grama
se apressam.
Audre Lorde, os ventos da Orixá, 1973.
Camila Mudrek é militante da Consulta Popular - Núcleo Revolta no Engenho de Santana e do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL) ENFF/UNESP.
Notas
1 “Governo corta verba de pasta que combate violência doméstica.” Disponível em: <https://spbancarios.com.br/02/2020/governo-corta-verba-de-pasta-que-combate-violencia-domestica>.
2 “Damares gastou apenas 53% dos recursos disponíveis para o seu ministério em 2020”. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/01/27/damares-gastou-apenas-53-dos-recursos-disponiveis-para-o-seu-ministerio-em-2020>.
3 “Boletim Especial de gênero: As mulheres na pandemia.” Disponível em: <https://iree.org.br/boletim-especial-de-genero-as-mulheres-na-pandemia/>.
4 “Boletim Especial de gênero: As mulheres na pandemia.” <Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2020/boletimEmpregoEmPauta16.html>.
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