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“ACM NETO E FAMÍLIA TEM UMA DÍVIDA IMPAGÁVEL COM O MEU POVO” AFIRMA LIDERANÇA DO POVO PATAXÓ HÃHÃHÃE

Atualizado: 28 de jul. de 2023

Ingrid Macedo



O autor da frase do título é Fabrício Titiah, ativista, escritor e comunicador indígena do povo Pataxó HãHãHãe, e a dívida a qual Fabricio se refere é a violência colonial histórica sofrida pelo seu povo, alvo do racismo institucional e estrutural do governo do estado. De fato, Antônio Carlos Magalhães (avô de ACM Neto) distribuiu títulos de propriedade em terras indígenas a fazendeiros entre 1978 e 1982, no segundo dos seus 3 mandatos como governador da Bahia.

Na imagem é possível ler: "ACM Neto e família têm uma divida impagável com o meu povo" e "Fabricio Titiah, uma das principais lideranças jovens do país faz criticas ao candidato ao governo da Bahia ACM Neto." O card de fundo preto e detalhes em grafismo (triangulações e traços retos) inclui, à direita, uma foto em preto e branco de Fabricio sentado no chão com as pernas cruzadas, enquanto usa um cocar e gesticula com as mãos.
Imagem: Reprodução Redes Sociais

Ao povo Pataxó HãHãHãe pertence a Terra Indígena Caramuru-Paraguassu, reservada pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão federal que antecedeu a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), por meio do Decreto 1916 - 09/08/1926. A área da reserva tem cerca de 54 mil hectares e se encontra em 3 municípios baianos: Camacan, Itaju do Colônia e Pau Brasil. Seus limites foram definidos com base em laudos periciais que atestam a presença dos nativos na região desde o século 17.

Segundo o site Folha de São Paulo, em 7 de maio dos anos 2000, 52.100 hectares (96,11%) da reserva indígena Caramuru-Paraguaçu estavam sendo “administrados” por fazendeiros que pagaram pouco ou nada para receber "títulos definitivos" das terras, principalmente dos ex-governadores Roberto Santos (PMDB) e Antônio Carlos Magalhães (PFL).

O seguinte trecho faz parte da matéria publicada pela folha:

Benigno Azevedo, um dos fazendeiros agraciados por ACM, disse à Folha que recebeu os títulos em cerimônia feita em praça pública, no município de Pau Brasil, sul da Bahia.
"ACM deu títulos para mais de cem. Foi duas ou três vezes a Pau Brasil", afirmou. Segundo Azevedo, não há índios na área. "Isso (sustentar que há tribos na região) é coisa do PT, da CUT, da igreja, dos sem-terra", afirmou.

Na época, de acordo com dados oficiais, cerca de 2000 indígenas residiam na reserva, obrigados pela violência latifundiária a ocuparem apenas 3,89% da área total de seu território. Fato é que o arrendamento e a titulação sistemática da reserva iniciaram-se logo após a sua criação, visto que o próprio SPI assinou contratos de arrendamento das terras.

Segundo declarações de responsáveis da FUNAI à Folha, outros conhecidos titulares na T.I. Caramuru-Paraguassu foram, por exemplo, o ex-prefeito de Pau Brasil Durval Santana (PFL), que possuía quatro propriedades na área (somando 3.000 hectares de terra) e o ex-secretário da Agricultura da Bahia, Pedro Barbosa de Deus, que foi dono de uma fazenda de 400 hectares. A Folha relatou ainda uma declaração de Raimundo Alves dos Santos, que afirmava ter recebido o título de sua terra depois de mandar cartas a ACM, a quem considerava "um amigo". O latifundiário criava gado nos 1.500 hectares de terra recebidas. Entre as famílias que resistiram pela recuperação de seu território, são conhecidos relatos de que ACM forneceu não só os títulos das terras como também participou ativamente na proteção dos latifúndios de seus amigos e colaboradores, alguns com os quais tinha aliança política e grande proximidade. A reserva passou a ser cada vez mais dominada por jagunços e milicias fortemente armadas trabalhando para os latifundiários.

Mobilizado a partir do final dos anos de 1970, um grupo de nativos acionou a FUNAI e organizações de apoio à causa indígena, o que culminou em uma ação por parte da FUNAI em 1982, pedindo a nulidade dos títulos e a remoção de cerca de 400 ocupantes de áreas da reserva. Segundo Alberto Evangelista, ex-chefe do Posto Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu, 95% destes ocupantes eram pequenos fazendeiros, mas os outros 5% eram latifundiários que ocupavam nada menos que 95% da totalidade das terras indígenas em litígio. Já em 2001, a FUNAI negociou com sucesso algumas terras ocupadas por pequenos proprietários, que deixaram a reserva mediante indenização paga pelo próprio órgão. No mês de setembro, cerca de 100 pequenos fazendeiros haviam desocupado o território. Por outro lado, Evangelista afirmou ainda que os latifundiários não admitiam negociar com a FUNAI e temiam que as negociações com os pequenos agricultores enfraquecessem seus processos na Justiça. Naquele mesmo ano, a Procuradoria Geral da República enviou ao STF um parecer, opinando pela retirada dos não-indígenas da região.

Os indígenas esperaram por 30 anos o lento e tortuoso processo de retomada dessas terras. Uma das partes mais demoradas do processo foi a citação dos 396 réus: levou dez anos.

Um caso de repercussão nacional ligado aos conflitos vividos na terra indígena foi o crime de ódio que tirou a vida da liderança Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por jovens de classe média em abril de 1997, quando saiu da reserva em companhia de uma comitiva e foi a Brasília, a fim de pedir auxílio ao MPF na solução do impasse. Em 2020, um de seus assassinos foi nomeado para o cargo de chefia da Divisão de Testes, Qualidade e Implantação da Policia Rodoviária Federal.

A imagem mostra parte da carteira de trabalho com uma foto 3 por 4 do indígena Galdino Jesus dos Santos, conhecido nacionalmente como Galdino Pataxo.
Carteira de trabalho de Galdino Pataxó. Reprodução: Site Iconografia da História. Disponível em: https://iconografiadahistoria.com.br/2020/10/17/o-covarde-assassinato-de-galdino-no-coracao-de-brasilia/

A ação só começou a ser julgada no STF em novembro de 2008. O ministro-relator original, Eros Grau, votou a favor dos interesses indígenas, partindo do princípio de que a ação chegou ao STF em 1982 e, por isso, deveria ser analisada à luz da Constituição de 1967, então vigente. No seu entendimento, "não há títulos de propriedade válidos no interior da reserva, anteriores à vigência da Constituição Federal de 1967." Em seguida, um pedido de vista do ministro Carlos Alberto Direito interrompeu o debate, que se manteve em suspenso por um período, na época, indefinido.

Em dezembro de 2008, Eros Grau atendeu a um pedido da FUNAI e emitiu uma liminar que garantia a permanência dos indígenas nas fazendas, que naquele ponto eram já áreas autodemarcadas. No texto de seu despacho, Grau justificou a concessão da liminar "em razão da tensão social verificada na área" com "sérios riscos à comunidade indígena".

Naquele mesmo ano, Juraci Santana, um antigo cacique do povo, declarou ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI) que, entre 1978 e 2008, pelo menos 20 lideranças foram assassinadas por defenderem a permanência na terra originária. Inseridos em um contexto de acentuada violência, os nativos foram vítimas frequentes de emboscadas, sequestros, torturas, estupros e assassinatos enquanto se colocavam contra a ocupação de latifundiários. Os nativos foram também alvos de difamação: afim de colocar a opinião pública contra o povo indígena, os latifundiários espalharam, por exemplo, o boato de que a cidade de Itaju do Colônia seria invadida pelos indígenas e o comércio saqueado. O boato foi investigado e desmentido pelo delegado de polícia da época.

Foi somente em 03 de maio de 2012 que o STF voltou a pautar a ação movida pela FUNAI e, por sete votos a um, anulou os 186 títulos de propriedades privadas que efetivamente existiam na reserva.

Grupo Pataxó Hã-Hã-Hãe, composto de pessoas de diferentes idades, incluindo crianças e idosos, posa para a foto em frente à uma casa branca.
Grupo Pataxó Hã-Hã-Hãe em fazenda retomada. Foto: Renato Santana, 2012.

A concessão de títulos de terras em áreas indígenas ocasionou o aumento exponencial da violência sofrida por essa população em terras suas por direito, desencadeando perseguições, dezenas de mortes, uma acentuada marginalização dos nativos e a diáspora de parte do povo indígena em busca de proteção. Pontuo aqui que a situação de forte insegurança no território não terminou ao fim do período de 30 anos em que o povo Pataxó Hãhãhãe esperou que a decisão do STF anulasse o criminoso esbulho das terras por parte do governo baiano. Ouvido pela Folha nos anos 2000, ACM (então senador) disse que não se lembrava de ter distribuído os títulos em seu governo: "Ignoro. Assinei dezenas de milhares de títulos quando era governador. Não acredito ter assinado. Se assinei, foi por erro de alguém que me passou." Mas, logo após, o senador se declarou "responsável por todos os atos" de seu governo. "Se fiz, foi por ter a convicção de que era o melhor a ser feito. Não vou ficar agora na bajulação de índio só porque está na moda".

Algumas dívidas históricas são imperdoáveis, principalmente quando os devedores não estão em busca de redenção e nada fizeram pela reparação dos males causados. Hoje, um sucessor da linhagem ACM segue um dos mais lucrativos negócios de sua família: procura manter a sua triunfante carreira política concorrendo ao Governo do Estado da Bahia. O perfeito exemplo da herança de um privilégio criado e mantido por meio da exploração e marginalização de minorias sociais e acumulado através das gerações de uma família branca (e não parda), rica e politicamente influente.


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Ingrid Macedo, de nome indígena Juacema, pertence ao povo Pataxó, é artesã, comunicadora popular e integra o coletivo Brasil Vermelho.



REFERÊNCIAS:


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