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A AUTODECLARAÇÃO E O SURTO DE NEGÕES NO APARTHEID POLÍTICO BAIANO

Caio Pinheiro


Não consigo precisar com exatidão quando, mas faz um bom tempo, na verdade, lá pelos idos da adolescência, quando a temporada na escola chegava ao fim, li num artigo de João Ubaldo Ribeiro - escritor baiano e filho prestigioso da Ilha de Itaparica-Ba - no jornal A Tarde, que a “leitura cria carapaças que nos protegem da ignorância”. Mas em sendo a ignorância uma palavra com apelo polissêmico, para início de conversa, vale a pergunta: o que é ignorância?


A ignorância, segundo a Oxford Languages, é o “estado de quem não está a par da existência ou ocorrência de algo”, ou seja, um estado de alheiamento ou devaneio. Às vezes conveniente e transitória, é certo que a ignorância, aqui discutida, tem sua superação relacionada ao ato de conhecer, ou seja, de lançar a luz do conhecimento sob as trevas representada pela opção ou condição de ignorância.


Assim sendo, quando somei à conclusão de João Ubaldo minhas inquietações enquanto homem fenotipicamente e politicamente negro, tomei conta do quão necessário seria refletir sobre a ignorância existente em torno do que denomino de “apartheid político baiano”. Veja, caro leitor(a), nessa altura deve estar se perguntando qual o fundamento dessa expressão, que, dependendo do seu lugar de apreciação, pode parecer um tanto quando jocosa ou mesmo revanchista.

Não me custariam muitos argumentos validar a ideia de que na Bahia há uma política segregacionista na ocupação dos cargos no executivo e legislativo; ainda que não possamos falar em algo institucionalizado - com leis e normas que o sustentem -, a exemplo do ocorrido na África do Sul. Todavia, é justo considerar ao menos estranho o fato de no território mais negro fora da África, apesar das alterações quantitativas observadas na última década, os afro-baianos estarem aquém de serem maioria nos espaços do poder político.

Mas os que refutam essa ideia podem contra-argumentar que nas últimas duas eleições o número de políticos autodeclarados negros eleitos cresceu expressivamente. É verdade, mas esse contra-argumento porta outras questões problemáticas, que, ademais, merecem nossa apreciação. Refiro-me às implicações da autodeclaração, da representatividade e da representatividade politicamente engajada no que ora pauta essa reflexão.


No Brasil, país de população miscigenada, a autodeclaração racial sempre foi uma questão complexa. O racismo que estrutura nossas relações sociais tornou a decisão de assumir-se negro quase que uma sentença de morte. No paraíso da democracia racial, branquear-se, ou seja, aproximar-se do padrão universal, do tipo ideal, do branco, historicamente é encarado enquanto questão de sobrevivência e única forma de burlar as interdições à ascensão dos que trazem no corpo as marcas d’África.


No entanto, nesse momento, quando as lutas encampadas pelo Movimento Negro em benefício de mais equidade na política geram dividendos, ameaças florescem no sentido de manter tudo como dantes. Há quem não queira o fim do “apartheid político baiano”. Daí, nesse pleito eleitoral, quando nos preparamos para irmos às urnas votar para presidente, vice-presidente, senador, deputado federal, governador, vice-governador e deputado estadual, autodeclarar-se negro, mas do que uma demanda cadastral, passou a conveniência política. Como se diz em baianês profundo: tem uns “pombos sujos” dando uma de preto!

Antes e depois de ACM Neto. Na segunda foto, o candidato aparece bronzeado em entrevista ao jornal da TV Bahia, afiliada da Rede Globo, no último dia 12. Um dos principais tópicos da entrevista foi a polêmica autodeclaração racial do candidato, que se considera pardo.

Do Blackface à Apropriação Cultural, exemplos sobram de como a branquitude (indivíduos e discursos que superestimam os brancos a partir da subestimação dos negros) se faz convenientemente negra para subverter as tentativas de ampliação dos direitos da população negra. Com efeito, nesse sentido, tornou-se emblemático o caso do ex-prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto, conhecido popularmente como ACM Neto, que, ao que indica os fatos, oportunamente passou a reivindicar sua ancestralidade africana.


Concorrendo ao cargo de governador da Bahia, ACM Neto, homem branco para nossos padrões raciais, mas, principalmente, politicamente branco, autodeclarou-se pardo quando do registro de sua candidatura, o que o torna negro segundo os parâmetros do IBGE, e, portanto, beneficiário de políticas públicas concebidas para aumentar a representatividade de minorias em cargos eletivos.


Apesar de refutar os que questionam sua postura, o que circula pela boca solta e indigna a negritude baiana, é que Neto, o mais novo “Negão da Bahia”, está é de olho gordo na reserva de recursos e de tempo de propaganda para candidatos negros determinada pela nova legislação eleitoral, fruto das lutas encampadas pelo Movimento Negro e não da benesse do Estado.

Jair Bolsonaro e ACM Neto. Foto: Marcos Corrêa/PR

O caso de Neto é exemplar de como a negritude e seus aliados devem atentar-se para as implicações da autodeclaração, representatividade e representatividade politicamente engajada na democratização do acesso ao poder político pelo povo negro. O imbróglio envolvendo ACM Neto me fez questionar se a autodeclaração e a representatividade numérica são garantias de uma atuação política e ideologicamente compromissada como a conquista e garantia de direitos para a população negra, capazes de promover a superação do “apartheid político baiano”.


Na Bahia, a performance de alguns políticos autodeclarados negros e os dados socioeconômicos atinentes à população negra atestam que nem sempre “autodeclarar-se negro e ser negro implica assumir-se politicamente negro”. O que a história política da Bahia nos aponta até aqui é que políticos artificialmente negros nunca estiveram compromissados com a superação do racismo e das iniquidades que marginalizam os afrobaianos.


Essa constatação me remeteu ao diálogo entre Pedro e sua tia Luara, personagens do livro “O avesso da Pele”, de Jefferson Tenório, escritor negro, ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Romance, enquanto sintomático das consequências de se ter dentro da arena política, políticos que não estejam dispostos a reverter através da atuação política o ônus do racismo que marginalizam a população negra.


Na narrativa, Pedro, desencadeia um diálogo com sua tia lhe perguntando: Tia, como suportava tudo isso? Luara, replica: Tudo o quê? Como resposta ouviu: Tudo isso de ser sempre julgada pela cor da pele. Luara resignada responde: “A gente se acostuma com tudo. A gente se acostuma quando você caminha na rua e as pessoas recolhem as bolsas e mochilas, a gente se acostuma a chegar numa entrevista de emprego e fingir que não percebeu a cara desapontada do entrevistador”.


Isto posto, devo dizer que para um homem politicamente negro, e mesmo para os aliados não negros da luta antirracista, é um tanto quanto descabido fazer uma escolha política desalinhada com a construção de uma sociedade justa e inclusiva. Isto posto, nós, negros e negras, bem como os aliados da luta antirracista, devemos priorizar o voto nos dos nossos comprometidos em liquidar o “apartheid político”. Axé!


Caio Pinheiro é historiador, educador, escritor e militante do Movimento Negro.

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