Rafael Nardi- SINDIUFSB
Algum materialismo histórico no 1º de maio é sempre oportuno
Colegas Docentes! Companheiras, companheiros, companheires!
Desde o maio de 1886 em Chicago muita coisa já aconteceu na luta de classes mundial mas o significado da data permanece tão atual como nunca. Somos chamados a refletir sobre ele.
Naquele primeiro de maio, a classe trabalhadora mundial vivia um período que ainda podia ser chamado de aurora do sistema de produção em que vivemos até hoje: o regime do salariado, o capitalismo. Apontado desde seu nascimento por gigantes do pensamento social, como Marx e Engels, como um modo de produção fantástico posto que reduzia as relações de produção à mesma lógica do sistema de trocas (o mercado) e que portanto seria capaz de emancipar a humanidade dos princípios ideológicos organizadores das sociedades feudais da europa abrindo, em particular, espaço para a ciência se expressar, o que por sua vez potencializaria enormemente as capacidades produtivas da humanidade e consequentemente também suas capacidades expressivas.
Por outro lado, como também apontavam Marx e Engels, a estrutura social de múltiplas classes da Europa feudal se simplificava em apenas duas (e resquícios das outras): a burguesia (pagadores de salário) e o proletariado (recebedores de salário) que entre si estabeleciam a relação comercial da compra e venda da mercadoria força de trabalho. Essa dinâmica mercadológica de oferta/procura da força de trabalho passaria a ditar a nova fase da luta entre as classes em que uma das classes tem ao seu favor a propriedade das máquinas/indústrias/terras enquanto a outra conta com seu quantitativo numérico superior e sua consciência (de classe) por ser construída.
Uma monstruosa capacidade produtiva se instalou desde então nos parques industriais de todo o mundo. A classe assalariada, que à época da publicação do Manifesto Comunista (1848) contava com cerca de 20 milhões de operários na indústria e majoritariamente na Inglaterra e França, se expandiu para Alemanha, países baixos da Europa, Estados Unidos e variava, em 1870, de acordo com dados do Institute of Labor Economics, entre 20% e 40% da população economicamente ativa (que àquela época era o próprio total da população, já que não havia qualquer regulação por legislação trabalhista que impedisse crianças ou idosos de trabalhar). Assumindo uma população de 275 milhões de pessoas na Europa em 1870 temos cerca de 86 milhões de assalariados.
Hoje, as estimativas são de que passamos a cifra de 2 bilhões de assalariados (em 1995 o banco mundial estimava em 950 milhões e em 2008 a OIT estimava em 1.5 bilhões), que se distribuem por todos os países do globo e em todos os ramos da economia mundial. O capital, a força social do sistema capitalista e que se multiplica mediante a expropriação do valor social produzido pelos assalariados, impõe a sua pauta em todos os cantos do planeta com violências mais ou menos explícitas a depender dos acordos viáveis entre as frações da burguesia e das pressões oferecidas pelo proletariado organizado consciente.
Aquele tempo de aurora do capitalismo ficou no passado. O problema da escassez se foi e a burguesia que ora anunciava orgulhosa a modernidade, hoje reage à história e lança mão da ciência suja, da anticiência, do terraplanismo, do fascismo para ocultar a verdade dura de que o seu sistema, o capitalismo, apodrece de maduro e deteriora as próprias condições de sobrevivência da nossa espécie na Terra.
Mas o que nós, professores universitários, temos a ver com tudo isso?
Segundo Arrigo Cervetto (1921-1995), comunista italiano, o sistema educacional cumpre um papel duplo na sociedade capitalista: 1) qualificar a força de trabalho e 2) difundir as ideologias da classe dominante. É uma afirmação tão simples quanto ousada e por isso pode ser chocante para muitos colegas. Sobretudo porque não raro, nos identificamos afetivamente com nosso trabalho. É comum entre nós o “trabalho por amor”.
É evidente que a dinâmica de trabalho de um professor universitário difere muito daquela experimentada por um operário fabril e isso frequentemente subsidia narrativas que nos colocam à parte da exploração capitalista. Como se toda a dinâmica global da luta entre as classes respeitasse nossos títulos acadêmicos e vaidades intelectuais.
Quanto ao primeiro aspecto de que fala Cervetto, olhemos objetivamente para uma comparação simples: um operário fabril, tipicamente, pega pedaços de materiais diferentes, de tipos diferentes, formas diferentes, produzidos em outras fábricas, e os integra com técnicas específicas implicando num resultado que se mostra útil para atender alguma necessidade humana e portanto pode ser vendido como mercadoria. Nós professores, pegamos pedaços de teorias diferentes, de origem diversa, moldamos com diferentes técnicas didáticas e as integramos na mercadoria força de trabalho, aquela mesma central no sistema capitalista. Se olharmos mais de perto a realidade do nosso trabalho vemos que tal qual o operário clássico da fábrica, produzimos o que o capital pede, com a peculiaridade de que agregamos valor à mercadoria estruturante do sistema.
Este quadro traz diversos desdobramentos. Primeiramente, pede alguma crítica. Por exemplo, alguém pode argumentar que “no CC que leciono na UFSB eu trabalho a consciência crítica dos alunos e que isso não é do interesse do capital”. Ok, é um bom ponto. De fato é possível praticar alguma rebeldia em nossos ambientes de trabalho. A pergunta que não quer calar é até onde o capital tolera isso, professor? Se, por exemplo, observarmos o projeto organizador da criação da UFSB e o que vivenciamos anos após, é possível identificar anteprojetos, reestruturações e mudanças que se articulam em nome da “universidade tradicional” que é a boa porque forma mão de obra, lenha para a fornalha capitalista. Uma história que Darcy Ribeiro, Sosígenes Costa e Anísio Teixeira bem souberam em seus dias.
Outro parênteses que se coloca é que nem todo trabalho se presta a agregar valor a alguma mercadoria objetivamente. De fato há muito trabalho inútil (e aqui estamos falando do conceito marxista de trabalho inútil) sob o capitalismo e em particular na atividade de professor do magistério superior. O ponto aqui é que quando um comprador adquire uma mercadoria, ele a usa como quiser. Um capitalista pode comprar a força de trabalho de um engenheiro para desenhar uma engrenagem ou para administrar os fluxos contábeis da sua empresa a depender de qual das suas necessidades de capitalista é mais urgente. Pode contratar um geólogo para descobrir novas jazidas de ferro ou para administrar as planilhas do seu ferro-velho. Em última instância, toda a burocracia estatal existe para resguardar a ordem capitalista: trata-se de garantir que os fluxos de mais-valia fluam para as mãos certas.
O segundo aspecto da atividade docente de que fala Cervetto se coliga justamente ao trabalho inútil (e, novamente, no sentido marxista e não moralista do termo) e é no fundo a resposta do porque este sistema ainda permanece de pé apesar de todas as suas contradições. Um uso sempre possível da força de trabalho de qualquer trabalhador é fazê-lo falar das possibilidades maravilhosas sob o capitalismo. De como somos livres no capitalismo! (Leia-se: a maravilhosa liberdade de escolher o que comprar com aquilo que nosso salário permite.) E de como somos livres para pensar no capitalismo! Aqui colocamos nossa crítica.
Na verdade nos é dada a liberdade de pensar criticamente, contanto que abstratamente sobre o sistema do capital ou, quiçá concretamente, contanto que se repercuta na produção de mercadorias vendáveis. Assim temos uma escala de tolerância das nossas rebeldias na prática docente: elas são mais toleradas na medida em que sejam mais comercialmente viáveis ou que subvencionem a venda de alguma outra mercadoria.
Não nos enganemos. A realização do sonho da libertação verdadeira do pensamento (por onde passa a discussão da universidade que muitos de nós sonhamos e cujo caráter popular é fundamental) não cabe dentro dos muros de um campus. Ela precisa se dar no terreno das expressões materiais da vida e no âmbito mais amplo possível: o de toda a humanidade. A potência do pensamento e do viver humanos precisa se libertar no fundo da própria estrutura de classes que a condiciona. Não à toa o chamado foi internacionalista: “proletários de todos os países, uni-vos!”
E isto jamais será tolerado entre os senhores do capital. É necessário que nossa classe e as categorias componentes da classe sejam mantidas desunidas. É necessário para o capital que os indivíduos da nossa espécie recorram ao mercado para atender suas necessidades de sobrevivência e de expressão e não as construam autonomamente. É necessário que os meios de produção com os quais esta expressão é possível continuem nas mãos deles.
Combater o oportunismo é construir a verdadeira universidade livre
Os marxistas são atacados. A frase “combater o capital” é apontada como uma nova versão do “combate” quixotesco aos moinhos de vento. Somos levianamente apontados como velhos, ultrapassados e idealistas tanto a partir da direita quanto da esquerda. Mas sabemos que os ataques, quando sérios, são hipócritas. Os grandes pensadores da burguesia mundial (desde o anti-comunista Brzezinski a Delfim Neto, passando pelos colunistas do Global Times) conhecem muito bem as ferramentas do marxismo e usam oportunamente uma parte delas especialmente escolhida de modo a atender os interesses estratégicos da fração da burguesia que representam.
Na esquerda, a mutilação do marxismo consiste no fenômeno que Lênin chamava de oportunismo: a arregimentação das energias políticas da classe assalariada para tocar a pauta burguesa travestida de pauta da classe trabalhadora. Lênin enfatizou em vários de seus textos (desde “O que fazer?” até o “Imperialismo, fase superior do capitalismo”) que o combate ao oportunismo deve sempre ser uma das tarefas principais do movimento operário. Isso porque, é com o político oportunista que o trabalhador tem contato. É ele quem alimenta a cabeça do trabalhador com as ilusões ideológicas que o mantém trabalhando apesar da sua vida estar um caos e seu salário indo no pagamento dos consultórios. Vem dele a fala que convence o trabalhador de que essa coisa de luta de classes é do passado, que o patrão é gente boa, afinal ele até planta árvores no fim do ano. É ele que “representa a base” porque afinal, “veio de baixo” e está no seu legítimo lugar de fala para dizer que todos devemos continuar mesmo é trabalhando, recebendo nossos salários sempre defasados, em condições de trabalho precarizadas, nos reinventarmos para produzir mais e agradecer aos céus por termos um trabalho. E é ele quem diz pra nós professores, que deveríamos ficar felizes porque afinal estamos na universidade pública e aqui se pratica o “livre pensar”.
A política oportunista assume seu compromisso com a burguesia ao difundir as ideologias burguesas mais palatáveis para a classe operária como programas que supostamente beneficiam a nossa classe. A política oportunista é burguesa, mas é feita por assalariados. E frequentemente, o político oportunista nasce daquele personagem ainda mais pernicioso do ambiente de trabalho: o colega oportunista, o escalador social que todos conhecemos bem. Escala no trabalho dos colegas, domina as burocracias certas, faz “amizades” estratégicas, usa os espaços no trabalho e até das organizações sociais para realizar seu projeto pessoal que se apresenta hipocritamente como projeto coletivo.
Nós concordamos com Lênin. O oportunismo, seja como fenômeno político, seja como desvio de caráter precisa ser combatido sempre! Nossa classe é muito mais forte e nossos ambientes de trabalho são muito mais sadios quando livres destes sujeitos. Para nós marxistas, o ambiente de trabalho precisa ser, antes de tudo, pensado como um espaço onde as capacidades humanas se manifestam e portanto deve, antes de tudo, ser adequado às necessidades do trabalhador e da trabalhadora, com singularidades de gênero, raça, sexualidade, saúde. (Afinal, dispor de boas condições de trabalho é o mínimo para se trabalhar bem.) Mas é o oposto da diretriz hegemônica de produção de egressos em escala, e não surpreendentemente, é justamente isso que o oportunista defende.
Nossa luta enquanto trabalhadoras e trabalhadores da educação é hipocritamente apresentada pelo oportunista como heroica e cumpridora de um grande dever nacional. É muito conveniente nos colocar como heróis porque assim a luta se dá no Olimpo das ideias. Na materialidade lecionamos em salas que chegam aos 32°C, sem água nas torneiras ou para beber, sem piloto de quadro, sem gabinetes, sem RU, sem cantina, sem espaço de interação entre as pessoas, sem servidores técnicos e docentes suficientes, gerando uma sobrecarga e adoecimento visíveis. Trabalhamos sob tal sobrecarga, em diferentes dimensões, em campi isolados, inseguros, sem garantia de auxílio transporte onde muitos estudantes nem conseguem chegar.
Entendemos que tudo isso precisa ser discutido, companheiras/os/es. E o temos feito na medida das nossas capacidades, associado às lutas nacionais por salário digno, combate à exploração e opressões. Mas precisamos de mais colegas docentes para se somar à luta. Precisamos engrossar as fileiras do nosso Sindicato/Associação Docente! Somos hoje poucos filiados e participantes ativos, ainda. Reforçamos o convite: se você ainda não se filiou e também considera fundamental a luta pela melhoria das nossas condições de trabalho docente, venha, participe, filie-se!
Por fim, para quem ainda se pergunta sobre a pertinência de uma análise marxista da conjuntura da nossa categoria na UFSB, lembramos que do internacionalismo (e não das relações internacionais burguesas) vem a palavra de ordem “o inimigo está em nossa casa!”. O oportunismo está em nossa casa e (des)coordena a manutenção das condições precárias de trabalho, a sobrecarga, o adoecimento e a falta constante de tempo e recursos que assola docentes. Que universidade queremos? Que carreira docente buscamos?
Forte abraço e saudações sindicais pelo primeiro de maio!
Rafael Nardi é Diretor Geral da Seção Sindical do ANDES/SN- SINDIUFSB.
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